terça-feira, 24 de novembro de 2009

Sócrates *


"Eu, de facto, nunca fui mestre de ninguém; só que, se falando ou considerando aquela que é a minha função, alguém me quis ouvir, jovem ou velho, nunca disse que não: nem é verdade que eu fale desde que retire ganho e não fale em caso contrário; pelo contrário, eu estou igualmente à disposição do pobre e do rico, de quem me queira interrogar e tenha desejo de ouvir o que eu respondo.

Se depois alguém, por causa destes encontros, vier a tornar-se homem do sim ou não, não seria justo que recaísse sobre mim a responsabilidade disso, porquanto a ninguém prometi ensinar nem jamais uma qualquer doutrina; e se alguém afirma ter aprendido ou ouvido de mim, em privado, algo que não aprenderam nem ouviram também os outros estai certos de que esse não dizia verdade."

* segundo Platão

Cartas e contextos


Pensando melhor, chego-me à frente com mais uma Carta, só mais esta, das dezenas que escrevi à minha neta em tempo que entendi oportuno. Só que... Só que, agora, aqui, intercalando-lhe contextos...Indesejáveis contextos de que, oportunamente, a imprensa se fez eco.

"Lisboa, 28 de Agosto de 2006

Mónica

O assunto de hoje é velho-novo: o sexo. A ideia é falar-te de sexo. Falar-te é, como quem diz, escrever-te que a coisa, assim, permite o teu livre raciocínio e garante-me, enquanto avô, maior à-vontade - sem rodeios.

Avancemos.
A linguagem: nos primeiros anos, os meninos têm pilinha e as meninas pipi. Depois os rapazes passam a ter pénis e as raparigas vagina.

Mais tarde...mais tarde, quando a escola aconselha o uso do dicionário, inicia-se a inevitável pesquisa e, invariavelmente, alguma risota, coincidente com a descoberta do corpo.

"A família enquanto instituição está a ser agredida e assaltada por erros que esvaziam os seus fundamentos essenciais."

E há de tudo: os/as controlados/as e os outros, as outras... Instala-se a fantasia e, não raro, com ela, a interrogação. Saudável. Sempre. Mesmo que inconsciente: o que fazer com, como fazer, quando fazer... "Eu já ouvi na televisão que..." "Na Internet li que..."Uma vez no café estavam a dizer que..." Em regra, experimentam os rapazes que, de si para si (ou entre si), dizem não ter nada a perder...

"Desde os 16 anos, Lori Williaws deu ao seu próprio pai sete fihos. Na realidade, Lori, actualmente com 27, e seu pai, Walter, de 54..."

Reflectem as raparigas (nem todas...) que aspiram a mais "qualquer coisa" do que o prazer, se devem, ou não, usar o corpo como os rapazes. É então que (às vezes) surge, fruto de conversas, a palavra preservativo, a palavra sida e, no meio de cochichos, um mal medido grito de liberdade a
definir... Estamos em plena puberdade, como a vejo.

"Desde Abril de 1984, durante 24 anos, Josef Fritzl, manteve a filha Elisabeth fechada numa cave com três dos sete filhos nascidos de violações. É acusado de homicídio, violação, rapto, incesto e escravatura. A cave onde Elisabeth Fritzl esteve fechada tinha 1,7 metros de altura e nenhuma janela."

Depois, depois assiste-se à luta entre culturas que, interiormente, se degladiam. Falo-te do que julgo conhecer, que é limitado, mas, a meu ver, merece ponderação: o controlo do corpo. Dar ao corpo o que, em momento próprio, o corpo, honestamente, pede. Sem provocar, no físico e na mente, danos irreversíveis. Ser responsável. Aqui está!

"A população de Ponte da Barca está em sobressalto com as notícias que dão conta da eventual existência de uma rede de prostituição infantil. que estará a levar jovens raparigas, com idades entre os 15 e os 17 anos, para a Suíça, contratadas com "baby-sitters."

Dou-te a imagem do avesso, o final indesejado. Por aí verás: os maus resultados escolares, a droga e o álcool que matam, o emprego que não se consegue por descontrole psíquico. O mau uso do dicionário que, bastas vezes, a família não ensinou a manusear, por não saber ou por "falta de tempo".
E surge o apelo "libertário" da "boite" que, fingindo-se lugar de sons e convívio, provoca
ingenuidades e, panfletariamente, fala de liberdades.Das que não abrem horizontes novos, nem fazem países.

"Retidas por seita, as três menores temporariamente retidas nos arredores (...) por um alegado grupo terapêutico fundado em meados dos anos 60, já seguiram para Inglaterra (...) na companhia da mãe. (...) Viajaram acompanhadas também por um mediador da "Catalyst", uma organização especializada em desmantelar cultos religiosos e, especialmente, recuperar crianças envoltas nesses mesmos cultos."

É tudo. Depois da história das orelhas furadas (ver carta de...), sobre sexo, pouco mais sei. Penso, contudo, que basta. És, nesta altura, aluna de 17s, 18s e 19s...Continua. O que não disse está na letra A do dicionário português-português e, meu Amor, se quiseres, vais encontrá-la facilmente.
Beijinhos."






segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Frases

"Quem apenas grita, vocifera e maldiz permanentemente a hora em que nasceu, já não está na graça perene em que a mãe o teve."

in "Diário II", de Miguel Torga

"Cartas do Meu Avô"


Vozes amigas têm-me feito chegar curiosidade e grande (e amável) interesse pelas "Cartas", que enviei "à Minha Neta" e que agora passaram a ser, definitivamente, por decisão que me alegra, mas me ultrapassa, "Cartas do Meu Avô".



Enquanto se aguardam novas de eventuais editoras (estas coisas, quando não metem escândalos, pornografia, ou outras chagas sociais ... não são fáceis...), aí fica a primeira, das, mais ou menos, duzentas e cinquenta achegas escritas por um avô nascido no século passado e...e vivo nesta primeira metade do século XXI.


Reza assim:


"SAC, 18 de Novembro de 2005


Querida Mónica

A fazer fé em informações registadas nas memórias que a saudade aviva e em assentos que hão-de saciar ratos, nasci às 8 e 38 da noite, fez ontem 68 anos, numa quarta-feira .


Tu mo lembraste bem cedo, estava eu, tomados os comprimidos da manhã, a pensar escrever-te... Com regularidade, assim como quem sente necessidade de falar ao (teu) futuro. É, para já, coisa íntima, mas a que, pelo meu lado, nada oponho a que o não seja, uma vez que, entre nós, não há segredos e esses, se os houvesse, seriam, como diria Torga, revelados em cifra, que, note-se, não é forma de se exprimirem gerações quando muito se querem - às claras. Como é o caso.


"De que me vais falar, avô?" perguntar-me-ás. Não sei... Ou melhor, sei. Vou falar-te de tudo o que, eventualmente, possa, a meu ver, ser útil, ou interessante, ou esclarecedor, ou belo, ou risonho, ou arma contra o medo e a solidão, neste mundo cheio de gente, cheio de contradições e transbordante de desafios, isto é, de apelos à juventude que, em ti, acredito ser muito mais do que apenas ferverosa dançarina de hip hop...


Não te admires que diga coisas acerca do que, das sete partidas do mundo, tenho arquivado - e venham a propósito; nem te surpreendas que, do meu dia-a-dia, de faça, uma vez por outra, um retrato mais ou menos impressionista.


Estou a pensar também referir-te, aqui ou acolá, reflexões acerca das leituras em que agora, mais do que no passado por conta de outros, mergulho com frequência, qual desafio a mim próprio, em abordagens repetidas e separadas, de vez em quando, vários anos (como me diverte este diálogo entre eu e eu, afastado Primaveras a fio...). Talvez não resista também a uma selectiva (e apropriada, espero) transcrição (fresca...) de crónicas, saídas na imprensa, em secções próprias, antes do "olá, mãe!" ou quando tu e eu comunicávamos pelo calor das mãos e através daquelas nossas gostosas conversas inspiradas na tua agenda feita de cantigas e de tantas, tantas coisas bonitas.


Vai ser assim. Ou não vai ser assim. Vai ser como a cabeça me ajudar e o futuro (que, para mim, és tu) continuar a querer, sendo certo que, como notou Vergílio Ferreira, "escrever bem não é escrever bem, mas sentir bem".

domingo, 22 de novembro de 2009

Notícias de Macau

Da viagem que, em finais de 1995, fiz a Macau, guardo gravadas várias entrevistas com destacadas personalidades locais, do ainda, na época, Portugal distante, que, por razões diversas, se mantiveram INÉDITAS, mas que agora, em "doses" que tentarei apropriadas a internautas, divulgarei pouco e pouco, no que tiverem de essencial para a história do território. Com particular relevo para o imediatamente antes...

Trata-se de 11 depoimentos, sobretudo, a propósito da vida, e do futuro previsível na altura, do último território nacional a mudar de bandeira...

Um dia destes, a conta-gotas, como é próprio da boa gestão do espaço NET, teremos assim, palavras de, por exemplo, Monsenhor Manuel Teixeira (entretanto, sepultado em Freixo de Espada à Cinta), do Dr. Senna Fernandes, advogado e escritor, do Arq. Manuel Vicente, entre outros.

Venham, por isso, com os vossos amigos, passear na ruadojardim que eu prometo reservar bancos à sombra para professores, para historiadores, para antropólogos... Para todos: os que concordaram, os que não concordaram e...e os que não tiveram outro remédio... E também, pois com certeza, para os chineses, de preferência, que saibam o português em que me vou aqui continuar a expressar.

O endereço está aí, e é, sublinho:

ruadojardim7.blogspot.com

no edifício defronte de vós.

Frases


"Há em mim várias figuras. Quando uma fala a outra está calada. Era suportável. Mas agora põem-se a falar ao mesmo tempo."

in Húmus, de Raúl Brandão

Abrigo precisa-se


"Que posso contra a vida? E se me recuso, se luto, que me espera?"

Ontem, sábado, à tarde, chovia e estava frio em Lisboa. E ali, quase em frente ao "Diário de Notícias" da minha saudade, no interior do espaço Multibanco do "Millennium BCP", esteve, abrigada do mau tempo, enrodilhada na mesma posição (passei por lá duas vezes, com duas horas de intervalo), uma mulher ...

E mais não sei dizer.

MTZ - o austrolusoxadrezista


Depois de, no Ateneu Comercial de Lisboa, ainda não tinha cabelos brancos, ter aprendido a mexer nas peças de xadrez com mestres Durão e Moradas, proporcionou-se-me, mais tarde, conhecer um jovem austríaco (Herberto Matzinger) que quis, à viva força, que eu lhe dissesse o que é que acontecia no tabuleiro...

Disse. Como é óbvio. Terei mesmo, posteriormente, "treinado" com MTZ várias vezes. Entretanto, pouco a pouco, "um de nós"...foi "desaparecendo"... Fui eu... Sem premeditação. A vida...

E assim andámos - sem reis, nem rainhas à nossa frente... Com Matzinger quase sempre a desafiar-me para uma partida - ou para "aparecer"...

Mas deixem-me ir direito ao fim, que a NET é "contra" muitas palavras: está na hora da homenagem à veterania activa. É que MTZ tem levado a vida a ensinar xadrez nas
escolas, nas associações juvenis, em todo o lado onde a modalidade ajuda, mais do que na ocupação de tempos livres, na ginástica mental de rapazes e raparigas a quem o futuro exige mentes despoluídas, concentradas e interessadas, não em drogas e similares, mas na saúde. Integral.

Em convívios saudáveis, à volta das coisas boas que ainda há por aí. Como o xadrez, sem dúvida.

Consultem-se psicólogos, sociólogos. Especialistas desportivos.

Entretanto, a verdade é que Herbert Matzinger sabe muito mais do que eu lhe "ensinei"...

É o homem, vindo de longe, da Áustria, para ser o "estrangeiro" mais português que conheço, e que fez do xadrez quase uma missão...

O concelho de Loures, onde vive, deve-lhe, pelo trabalho concretizado, respeito acrescido.

Agora!


"Alekhine sentiu o frio fustigar-lhe a cara. (...) Só o frio parecia desafiar a pacatez de um país tranquilo pendurado no fim da Europa."

sábado, 21 de novembro de 2009

Frases


"Sei nadar "crawl", mariposa e costas", mas "gostava de ser um periquito amarelo"

in "Conversas Diferentes", Cláudia Caiado, da CERCI Lisboa

"Quarto de Despejo" - a pinga


Mas há que continuar a ler Catarina Maria de Jesus:

"...Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome.

Os meninos ganharam uns pães duro, mas estava recheiado com pernas de barata. Joguei fora e tomamos café. Puis o unico feijão para cosinhar. Peguei a sacola e saí. Levei os meninos. Fui na Dona Guilhermina, na Rua Carlos de Campos. E pedi para ela um pouco de arroz. Ela deu-me arroz e macarrão. E eu fiquei conversando com o seu esposo. Êle deu-me umas garrafas para eu vender. E eu catei uns ferros.

Depois de conseguir algumas coisas para os meninos comer. Reanimei-me. Acalmei o espírito. Fui no senhor Manoel vender garrafas. Ganhei 22 cruzeiros. Comprei 10 de pão e um cafezinho.

...Cheguei na favela, fiz o almôço e fui lavar roupas. 3 semanas sem lavar por falta de sabão. As visinhas ficaram horrorisadas vendo a quantidade de roupas que eu lavei. A Dona Geralda esposa do senhor João da Purtuguêsa veio procurar a Fernanda dizendo que havia roubado a sua bacia de roupas. E foi vasculhar a casa da mãe da Fernanda. A Fernanda lhe acompanhou até a sua casa e encontraram a bacia na cosinha. Ela pediu desculpas a Fernanda e deu-lhe uma garrafa de pinga. Quando recebeu a garrafa de pinga, ela ficou tão contente. Sorria contemplando a garrafa. Veio elogiando a Dona Geralda."

Homenagem póstuma


Quando os dedos das mãos quase chegavam para me contar a idade, pedi a meu pai (que era, lá em casa, uma espécie de carpinteiro de toscos) para me improvisar uma paleta em contraplacado onde se pudessem fixar meia dúzia de aguarelas baratas que, coladas em cartolina a condizer, minha mãe comprara a pedido de artísticas inocências.

Meu pai disse que sim e esmerou-se... Esmerou-se de verdade. E é por isso que é dele (homenagem póstuma), meu e de minha mulher, o quadro onde a tal paleta do entusiasmo, agora colada em tela, com fundo acrílico, repete, como pode, o beijo e glorifica a memória de um gesto cujo significado a era da transmissão rápida de afectos vai ter de (que) compreender.

Para ver se se consegue inverter esta queda para o não sei quê...

Jardim lógico


Apetece-me saudar Paris. E, pacificamente, recordar o Maio de 68 e andar por aí a escrever nas paredes: "é proibido proibir", "exagerar é começar a inventar..." E coisas assim... Mas não! Não devo. Há que manter a compostura e não provocar o poder estabelecido - que livremente se votou.

Porra! A democracia é difícil. Quando quer ser educada. E convivente.

E, no meio disto tudo, que poder irão ter as Internetes no Depois de Amanhã? Será que haverá Depois de Amanhã? E se houver, face à crescente crise de natalidade, não será um Depois de Amanhã de gente concebida num "humanário", a partir de embriões, entretanto, feitos de gente crescida, adaptada a novo meio ambiente, inevitavelmente reformulado, onde novos talibans surjam como heróis a reproduzir? Haverá Hitlers a dirigir "isto"?...

Lida e relida, trago-a para aqui. Pelo sim, pelo não, pode ser útil Depois de Amanhã. É uma pequena passagem de uma carta de Ramalho Ortigão a John Bull: "Desde muito tempo que os arsenais nos estão dando este espectáculo funambulesco: inventar a couraça que resista à bala, para em seguida inventar a bala que fure a couraça, para voltar a reformar a couraça, para tornar aperfeiçoar a bala e assim sucessivamente, interminavelmente, até ao infinito."

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Generosidades depois dos... *


"...o nosso colega de leituras na Comunidade, Marcial Alves, tem um "blog". Já me demorei nele e penso que todos iremos reconhecer as suas sempre poéticas palavras quando estamos na sua presença; poéticas por que têm ligações originais, por que possuem o estar e ser do Marcial neste mundo."

* 70 e ...

Obrigado!
M.A.

Idílios


Maria! ver-te à porta a fazer meia
Olhando para mim de vez em quando,
É o que nesta vida me recreia.

Acordo até de noite suspirando
Por que rompa a manhã e tenha o gosto
De te ver já tão cedo trabalhando


( ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...)

in Campo de Flores, João de Deus


Não, não!... Também não é assim...

Merda é cópia


O falecido actor Filipe Ferrer, com quem estive à beira de concretizar um projecto (já não me lembro a que propósito), pouco depois de ter andado pelas bandas da BBC, em Londres, disse-me uma vez, à saída do seu Mini, no Bairro Alto, em Lisboa, que estava a pensar escrever um livro escabroso (e relatou-me pormenores...) que, "de certeza, agarraria os leitores logo nas primeiras linhas..."

Pego-lhe no ponto e penso na quase ingenuidade que é, agora, em época de poucas vergonhas de toda a ordem, inclusivé políticas, acreditar na eventual publicação de umas "Cartas do meu Avô", que não atam nem desatam... Digo eu que acho que há gente para tudo...

Já expliquei à rapariga, entretanto, que a coisa é como na NET (e era/é na imprensa e não só...): no meio de tanta agressão e de tanta pressa...só se lê com atenção o que é agressivo, ou maldizente, ou dá dinheiro...

Qualquer merda moderna, com a intensidade que mestre Victor Hugo lhe pôs, já é cópia sem interesse...

Ainda temos o neologismo bardamerda, mas...mas já deu o que tinha a dar...

Uma flor para Catarina Maria de Jesus


Hannelore Nadolny, ex-companheira numa Comunidade de Leitores, na Culturgest, em Lisboa, enviou-me, com um abraço, um mail que me dá notícia da sua "partida iminente" para a Favela de Camboinha, Cabedelo, no Nordeste (na Paraíba) "para um novo voluntariado".

Ói, Hannelore
Me faz um favor: se for a S. Paulo (o mundo é pequeno) e "vir" Catarina Maria de Jesus, dá para ela uma flor em meu (nosso) nome. Valeu?
Espero notícias. Um abraço. M.A.

Condomínio

A Julieta Sanches, presidente da direcção da CERCI Lisboa, apesar de ser uma mulher atarefada e dizer que a sua sabedoria em infomática não é muita, enviou-me um simpático mail a sublinhar que esta Rua é bonita e que já cá tinha estado. Mas está muito grata pela tentativa de ajuda aqui feita.

Sem garantias de nada, sublinho eu que, como os pilriteiros, só dou o que tenho...

Entretanto, fica escrito: este espaço também é vosso. O Dr. Ricardo, que sabe disto a potes, pode dar-vos uma ajuda. Há terreno que baste para as vossas árvores - e dos pais dos deficientes que queiram sentar-se ao pé de mim.

Para já, aí vai a resposta de um dos entrevistados no "Conversas Diferentes" a uma das perguntas que lhe fiz e que consta do livro:

"O país mais próximo de Portugal é...é o Brasil: fala português!..."

Continuarei a alindar a minha Rua com algumas "saídas" dos jovens cercianos publicadas no "Conversas".

Memória visual


Estive duas vezes na Venezuela.

Com a primeira, já referida em espaço anterior, relaciona-se a segunda, além do mais, porque...
tendo tido, em ambas as oportunidades, a embaixada de Portugal em Caracas como "centro de operações", foi lá que, na minha primeira presença naquele país, atrás de um biombo, com a urgência requerida, uma generosa funcionária me ajudou a combater um incómodo panarício, dando-me uma valente injecção na nádega.

Ficámos amigos. Quando, anos mais tarde, lá voltei reconheceu-me logo...

Certo é que, se o Chavez me facilitar terceira viagem, e eu tiver algum cuidado de saúde a resolver, será à nossa embaixada que irei. De certeza.

Espero que a simpática senhora, entretanto, não se tenha reformado como eu.

Embora, por certo, as feições já não fossem as mesmas...

Veremos.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Curva perigosa


Parece um diário à Vergílio Ferreira, mas não é. São os meus papéis que me voam mal abro a janela. E esta NET é muito ventosa. Leva-me tudo...

Prometi trazer aqui, de vez em quando, é o que vou fazer, alguns "fados" que copiei na Hemeroteca de Lisboa, para contextualizar os tempos vividos por uma jovem a caminho, na altura, da sua maioridade. Aí vão mais dois ou três, que isto não é fácil...E as memórias são curtas. Da imprensa dos finais do século XX:


"Na Lapinha, a maior casa de espectáculos de Belém do Pará, os frequentadores descobriram que há casas de banho para os três ( ! ) sexos."


" (...) estimam-se em 30 mil por ano os novos casos de maus tratos e abuso sexual nas crianças: 23 mil por negligência, seis mil por abuso físico e mil por abuso sexual. Casos delicados que acontecem no seio familiar e que por falta de denúncia se repetem uma e outra vez."


"Um subchefe da localidade chinesa de Zhanjiang, ao Sul do país, foi morto e decapitado por um marido ciumento, que cozinhou a cabeça decepada numa panela de pressão, noticiou (...) o jornal "Express News" de Hong Kong".

Sabedoria popular


"Se parares cada vez que ouvires o latir de um cão, nunca chegarás ao fim do caminho"

Provérbio chinês

Apetece-me rir...


No início da década de 80, do século passado, andava Chavez, quiçá, ainda a saber o que fazer, e como..., quiseram os maiorais do meu jornal de então que, devidamente apresentado às autoridades locais, portuguesas e venezuelanas, eu fosse, pelo menos, a Caracas e arredores "saber coisas" acerca da nossa comunidade. Assim foi (como, depois, a muitas outras...).

Preparada a viagem em tudo o que tinha a ver com o lado português, adequadamente credenciado, mal cheguei à capital venezuelana, aproximei-me dos departamentos oficiais do país e...e quase a esmagar-me...

"Diga-nos tudo o que precisa. Esteja à vontade..."

Lembro-me de, então, meio surpreendido, ter equacionado, num ápice, o contexto:

"desconhecimento directo do meio local, Caracas cidade famosa pelos seus perigos, gasolina ao"preço da chuva"...

"Muchas gracias pelo vosso acolhimento. E, então, se não vos parece mal...o que eu precisaria para me sentir à vontade era...era de um carro com motorista...Sabem, não conheço a cidade..."

"Seguramente, bla-bla, bla-bla, bla-bla, foi a resposta imediata. Cordial.

E passei a ter carro com motorista, guarda-costas e, embora feia, uma guia turística a toda a hora...O tempo todo que lá estive.

Até que, num fim de tarde, se deu a anedota: acabei por ir a uma recepção oficial para que o gabinete da presidência da República da Venezuela me tinha mandado convidar - protegido, como andava, por dois guarda-costas, um do meu lado esquerdo, outro do direito. Isto, enquanto o Dr. Rosa Lã, então, na ausência de embaixador, nosso Encarregado de Negócios em Caracas, girava, digamos, desprotegido, no meio do tilintar dos copos...

Rimo-nos.

Entretanto, passados estes anos, estou a ponderar agora nova viagem à Venezuela e, já não estando no activo, sinceramente, não sei que faça: se arrisque ou se escreva ao Chavez a perguntar o que é que ele pode fazer pela minha segurança...

O que é que acham?...

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

"Quarto de Despejo" - fé e fome


Dois efes. Catarina Maria de Jesus, em S. Paulo, Brasil.

"... Na minha opinião os atacadistas de S. Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome!

Naquela epoca, os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo.

Mas nós não podemos deixar de comer."

A resposta


No curso nocturno, o professor de Física, salvo erro, era, no calão da malta, o "Teixeira Maluco". Um dia, o Lúcio, aluno dos mais velhos e respeitados da turma, foi ao quadro
e o setôr Teixeira ter-lhe-á perguntado não sei o quê, a que Lúcio terá respondido de uma forma quase, mesmo quase certa...


Ouviu-se, consta:

"o que o senhor acaba de responder equivale a entrar aquela porta de pernas para o ar..."

"Mas nem por isso deixava de estar cá dentro...", terá retorquido o Lúcio, secundado pela gargalhada contida da malta, meio ensonada, depois de um dia inteiro a ganhar para a bucha...

Naquela noite não houve negativas na caderneta, disse-se. E, no final do ano, soube-se, Lúcio...Lúcio passou - com média superior à média...

Frases


"A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão, maricas; se se enternece, é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia o sexo; se vai a qualquer parte ver o mundo, faz constar que foi em viagem de estudo ou viagem de negócios. Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos, ou maricas, ou fracos, ou lúbricos, ou estroinas.E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas.

Ó Portugueses, é tempo de torcer o pescoço ao respeito humano. Olhai que nós somos bons e talvez seja verdade que somos Poetas."

in "Diário" de Sebastião da Gama

Comunidade de Leitores CULTURGEST


Depois de um dia em que a Poesia para Cravo, perdão, para cravos (de papel) , teve aqui imprevista abundância de espaço, entrou-me no computador a Helena Vasconcelos, que conheci dinamizadora de Comunidades de Leitores, em Lisboa, na Culturgest, e que é, vista por si própria, uma mulher "feita do sal das lágrimas, do gosto do amargo do suor, do desconcerto brutal dos gestos, no agasalho do riso (...), curiosa do mundo como um bicho-de-conta", que nasceu "em noite de lua cheia." E que...e que, generosa como outros, lá mais para trás, neste linguado (antigo vocabulário de jornal) agora electrónico, disse ontem:

"Muitos parabéns pelo seu blog. Vou ser visitante assídua. Tenho pena que já não apareça pela Comunidade, faz-nos falta.
Um grande abraço com amizade da Helena."

Ontem mesmo também, de repente, surgiu-me aqui na máquina o Luís Graça. Pareceu-me um pouco chateado com a porca da vida... Ele que sempre vi na Comunidade como uma espécie de Varatojo Literário, com longas dissertações acerca das obras em "esmiuçamento"...Mas que agora não quer que os seus blogs "sirvam de pretexto para romper relações cordiais". Não percebi.

Entretanto, escreve, já deu uma espreitadela pela "Rua do Jardim", sem fazer comentários ("depois torna-se um vício e não sei para que lado me hei-de virar").

Ok, Luís Graça! Eu, como a minha neta "revelou" no seu comentário (generoso) só tenho 72 anos
e, como acabo de entrar "nisto", ainda não tenho problemas desses...).

Retribuo, apertado, o grande abraço.
Até sempre!

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Cravos de papel


Se, com dizem, o Natal é quando um homem quiser, porque é que hoje, se eu decidir isso, não pode ser dia de Santo António?

Para mim, é, acabou-se. Eu cá me entendo. Desde logo, já o sabem, sou lisboeta. Além disso, apetece-me poesia para cravos de papel. Como Natália, por exemplo, que, se calhar, em idênticas condições, gostava dela para comer...

Junto gostos e...


Homenagem a Natália Correia - em papéis de todas as cores:


P'ra que serve a poesia?


Interrogou-se o poeta


Omitindo que a vivia


Igual à tua, secreta


P'ra que serve a poesia


Perguntaram ao jantar


Respondi que não sabia

Questione-se o luar


Que interessa versejar

Quando o sentir é estreito

Que interesse tem um lar

Sem flores no parapeito?


Que interessa versejar

No deserto, sem ninguém,

Se poema é achar

O céu na terra, alguém...


P'ra que serve um poema,

Será mesmo p'ra comer?

Ou será coisa suprema

De quem adora viver?





P'ra que serve um poema

Se S. Tomé o não lê?

P'ro mesmo que a alfazema

Num corpo que ninguém vê


Quanto vale a poesia

No mercado da verdade?

O preço da sinfonia

Dum gesto de liberdade


Quanto vale a poesia

Na balança da paixão?

Se fosse a ti não dizia

Guardava-a no coração

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Eça é que é essa...


"Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogá-la toda, sem repetir a fatal

indulgência que o levou a poupar Noé; se não fosse o egoísmo senil desse patriarca borracho, que

queria continuar a viver, para continuar a saber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não

sermos..."

Cartas do meu avô


Alarmado com as notícias que todos os dias passei a ver nos jornais com "novos olhos", pouco depois de a Mónica ter completado 16 anos, decidi, independentemente das conversas que tinhamos, começar a escrever-lhe cartas, cartas simples que fossem assim uma espécie de alertas para a sua aproximação à maioridade.

Escrevi-lhe não sei quantas até ela completar 18 ANOS (a Mónica é (a) minha neta. Consultada, mais atrás, a ficha deste "internauta", subentende-se, decerto...). Por agora não as vou divulgar aqui. Talvez uma editora as queira mostrar e, assim, "pagar-lhe" um mestrado... Mas isso é outra história...

Para já, o que posso, gostosamente, registar neste espaço aberto é que, o que era uma colecção de Cartas à Minha Neta é agora um volume de Cartas do Meu Avô. Por decisão da rapariga, note-se.

Entretanto, quero testemunhar na NET, sem novidade, acredito, que, num mundo carente de tranquilidade, continua a ser preciso confirmar todos os dias valores essenciais. E dizê-los à juventude. Se há ou não editores que acompanhem depois este objectivo, logo se verá (há que ter em conta que, numa visão de puro mercado, a caixa registadora se pode entrepor aos bons propósitos... Até de avós editores... E gente que se diz amiga...Dos jovens...).

De momento, o que talvez deva fazer, o que vou fazer, é, pouco a pouco, lembrar a quem venha à RUA DO JARDIM, pedaços, apenas pedaços, do muito que, negativo, se passou no mundo entre os 16 e os 18 anos da minha neta. O contexto. Isso, o contexto. A justificação, se quiserem, do que, nas Cartas, foi saindo da caneta...Foi trabalho de algumas, de largas semanas na Hemeroteca de Lisboa.

Para não assustar, aí vão, hoje, apenas, apenas três das muitas notícias que me, que nos, ameaçaram...


"A polícia columbiana descobriu, a 160 km de Bogotá, um centro de formação de assassinos profissionais, onde foram encontrados os corpos de 80 pessoas torturadas"

"As três enfermeiras do hospital público de Viena confessaram ter morto, desde 1983, 44 pessoas através da administração de doses elevadas de insulina e do emprego da força (...). Uma quarta enfermeira, de 49 anos, foi, entretanto, presa ontem...(...)Os "anjos da morte", detidos na quinta-feira sob a acusação de assassínio, começaram a preparar o seu plano macabro em 1982, utilizando não somente grandes doses de insulina, como barbitúricos e água para se desembaraçarem dos doentes acamados, com uma média de idades entre os 75 e os 80 anos de idade."

"Dois peruanos "ganhavam a vida" a apanhar preservativos usados para, de seguida, vendê-los ao "preço da chuva" nas ruas e bordéis de Lima. Juan Cordova e José Gasman dedicaram-se a recolher os preservativos das praias e, depois de lavados, vendiam-nos como novos."


Em próximas intervenções, direi mais...

domingo, 15 de novembro de 2009

CONVERSAS DIFERENTES


Em regime de TOTAL voluntariado, tive oportunidade de, ao longo de cerca de um ano,

entrevistar 31 deficientes intelectuais da CERCI de Lisboa.

O resultado desse apaixonante trabalho está agora reunido no livro CONVERSAS DIFERENTES,

que tendo tido o Alto Patrocínio do Presidente da República e o apoio da Junta de Freguesia de

Carnide e de várias entidades privadas, pode ser adquirido a partir de um pedido para o mail

geral@cercilisboa.org.pt

ou pelo telefone da instituição 218 391 700.

As receitas das vendas são EXCLUSIVAMENTE para apoiar as actividades da CERCI de Lisboa.


O que peço a quem entre nesta Rua é simples: que ADIRA E MULTIPLIQUE POR TODOS OS SEUS AMIGOS uma cadeia de solidariedade, que bem ficava se também pudesse contar com o apoio televisivo de, por exemplo, o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, a quem o livro foi oportunamente enviado e que sempre tive como pessoa generosa.

Tecer Arraiolos


A meu lado, também ela parecida comigo nos anos, minha mulher tece, há meses, um tapete de Arraiolos, que pode não ser nada, mas...





Aqui há uns anos, não muitos, como se sabe, um movimento radical islâmico talibã, que controlava 90% do Afeganistão, fez saber que todas as estátuas pré-islâmicas existentes no país deviam ser dinamitadas porque representavam "deuses dos infiéis". E arrasaram, bombardearam duas estátuas de Buda, afirmando que seriam destruídas "todas as esculturas que reproduzissem ou se assemelhassem a formas humanas, no país, uma vez que o Islão proíbe a sua existência."





mas...à sua escala e se se lhe juntarem os óleos e os acrílicos que pintou, as exposições em que participou, antes e depois da era democrática do pós-1974,





No Médio Oriente, os homens matam-se e destroem séculos de História.





Em Portugal, há estátuas anteriores ao 25 de Abril de 1974 que...que foram retiradas.





Em Bissau, depois da descolonização, vi no lixo estátuas de portugueses
que a lusa história regista e que, goste-se ou não, constituem obras de arte. Bom será que, no mínimo, lhes tenham dado destino idêntico ao das, pró-comunistas, que os checos tinham em Praga e que agora estão em lugar público (e digno, penso eu), nos arredores da cidade. E constam dos guias turísticos.




já é alguma coisa e faz-me, aqui, solene e publicamente, dizer-lhe quanto é importante continuar, no mínimo, a tecer o Arraiolos que agora tem entre mãos. É que, consta, um dia duas rãs caíram num vaso com leite. Uma morreu afogada, outra, tanto bateu com as patas que ... que fez nata ...



Até já! Ainda não tenho sono.E há tanto para dizer...





Linhagem


A cadela, vírgula, da minha vizinha, vírgula, é um animal de raça. É uma "setter". De pura linhagem.

A dona, entretanto, afirma-se do mais genuíno sangue proletário e diz que está presente em todas as manifestações anti-racistas de que tem conhecimento. No que respeita à cadela, porém, é rígida - nada de misturas.

Eu, por sinal, tenho um rafeiro bastante simpático, não desfazendo, com excelente faro, boa presença, alto, a atirar para o morenaço, nascido na chamada linha do Oeste (a caminho de Torres Vedras). É, digamos , um cão a que, com propriedade, se pode chamar de Faro-Oeste...

Por outro lado, apesar de todas as qualidades do bicho, como também sou contra o racismo, não me importava que o Tiquetaque (é o nome do meu cão) namorasse a cadela (da minha vizinha).
Mas, a este namoro, a dona opõe-se...

Entrementes, o animal não larga a "setter" e procura namorá-la às escondidas. Porém, ao que sei, sem êxito. A minha vizinha exerce sobre os actos da cadela a mais feroz vigilância, não a deixando ter as ligações que ela quer. Apesar de já ser maior e vacinada (contra a esgana e a raiva) e o meu cão também.

É claro que eu sou suspeito porque o rafeiro é meu e pela minha banda não há, em princípio, nada a perder... Já a minha vizinha não pensa assim e, não havendo "setters" nas nossas imediações, não vejo que, pelos modos, aconteça outra coisa à cadela que não seja...ficar solteira.

O amor do meu Tiquetaque é de origem proletária, bem sei, mas parece-me sincero. É pena que o enlace não se realize.

A dona da "setter", que continua a afirmar que vai a todas as manifestações anti-racistas de que ouve falar, mantém-se, porém, intransigente.

Um dia destes, todavia, apareceu muito chorosa: a "setter" mordera-a. Eu, que de linhagens pouco sei, julgo ter percebido o sentido das dentadas da cadela: não estava a gostar da incoerência da dona e...zás!... Lá porque os homens murmuram quando ela falta às manifestações anti-racistas e lho deitam em cara no dia seguinte, não há o direito de abusar e ser discriminatória com os pobres bichos, sobretudo quando o amor entre si - como é o caso - parece sincero e respeitável.

E mais não digo.

Frases


"Foi o meio que me expulsou. Foi a lezíria que, extensa, era estreita e apertada, e algemante da minha humana vontade de ser"

in À Sombra da Minha Latada", de M.A.

sábado, 14 de novembro de 2009

Frases

"Em Portugal, todos os dramas terminam numa grande festa e no perdão dos copos de vinho. Até certo ponto, é um país feliz com vinho: gosta daquilo que mais lhe amarga e canta o que lhe dói fundo na alma".

in "Gente feliz com lágrimas", de João de Melo

O pintor


"...Agora a dois passos das Montanhas Azuis, em Terras do Talvez, com os verbos que Fernando Pessoa me ensinou nas aulas que frequentei entre Paris e e Sidney", Bernardino Cadeiras, ex-vendedor de couves, primo de Fernão Mendes Pinto, retirado (ainda vivo, espero...), taxista e outra coisas mais...



Pintor de construção civil



Pintor?...Como é que foi isso de, em Portugal, ter começado nas couves, depois, na Austrália, ter rejeitado as barragens e, de certo modo, a serventia no açúcar para, de repente, aparecer na construção civil?



Sabe, um tipo que emigre não pode escolher trabalhos. Onde se ganha mais é que tem que se estar. Caso contrário, anda-se para trás...



Pintor de construção civil...



Falei com alguns companheiros e pedi a um deles: "arranje-me um trabalho de pintor, que eu vou ver se me consigo ajeitar...Se não conseguir também não perco nada...De qualquer maneira, têm que me pagar um dia ou dois, têm que me pagar enquanto eu lá estiver, portanto, veja se me desenrasca isso..." E assim foi: o homem conseguiu-me o trabalho e eu não hesitei...


Apresentou-se...


Pedi emprestado um fato de macaco, já sujo com pingos de tinta (não levei um fato de macaco novo, não!...), e apresentei-me ao capataz como oficial pintor...


E depois?...


Acto contínuo, o fulano, honesto, passou-me para as mãos um aparelho desarmado, que, de imediato, verifiquei tratar-se de uma pistola de pintar (cada peça para seu lado: borrachas, motor eléctrico, tu separado...). "Agora é que eu estou arrumado...Não sei por onde lhe hei-de pegar...", pensei. Entretanto, o dito capataz deu-me também um aprendiz e..."espera lá, vamos ver aqui uma coisa..." Dei sinal ao rapazito que ia à retrete e, se bem o imaginei, melhor o fiz: decidi demorar-me no W.C. o tempo suficiente para que o miúdo montasse a engenhoca..."Pode ser que quando eu voltar se perceba qualquer coisa..." Bem dito, bem feito: quando cheguei de novo ao pé do aprendiz já ele tinha montado a pistola e até andava a brincar, a fazer algum trabalho com ela. "Olá, agora que está tudo preparado, vou então tomar conta do resto..." Lembrei-me dos tempos de criança, no Algarve, em que a gente pulverizava a batata redonda para lhe matar o escaravelho, e, ao ver a pistola, associei...Mais a mais, tratava-se, não de pintar uma superfície lisa, mas uma rede, num parque de automóveis... Mesmo que deixasse escorrer, não se notava..."Isto é exactamente como eu fazia com as batatas... É pulverizar... Não deixar muitas falhas..."Aguentei-me e comecei. À medida que ia pintando, a coisa ia melhorando...


E o aprendiz?...


O aprendiz era só para ajudar a mudar as ferramentas de um lado para o outro e, de vez em quando, dar uma pintadela...


in Entre Vistas nos Arredores das Montanhas Azuis, de M.A.





tei...





Falei com alguns companheiros e pedi a

"Quarto de Despejo" - convite...


A vez e a voz, com som de revolta. Catarina Maria de Jesus, que deus, ou Deus, tem, ou há-de ter...


"...Discuti com o espôso da Silvia porque êle não queria deixar eu encher as latas. Não tinha dinheiro em casa. Esquentei comida amanhecida e dei aos meninos.

...O Senhor Ireno disse-me que esta noite houve roubo na favela. Que roubaram roupas da D. Florela e mil cruzeiros de D. Paulina. O meu barracão tambem está sendo visado.

Duas noites que não saio para catar papel. Para evitar aborrecimentos, eu levei o radio para a casa de D. Florela. E eu que estou querendo comprar uma maquina de costura...

...Seu Gino veio dizer-me para eu ir no quarto dêle. Que eu estou lhe despresando.

Disse-lhe: Não!

É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com êsse dinheiro comprar terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir a casa de ninguem. Seu Gino insistia. Êle disse:

- Bate que eu abro a porta."

Frases


"O meu desporto favorito é algo que eu inventei e a que dei o nome de "esplanagem", que consiste em ficar sentado numa esplanada a observar quem passa."

Joaquim Monchique
Arauto da gargalhada

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Imagens sonoras


Para Manuel Costa, organeiro em Sidney, na Austrália

Sé de Lisboa num domingo à tarde. Órgão foi mais importante do que Santo e, sem padres, esgotou, em menos de nada, o espaço dos fiéis - de música celestial.

Oportunidade para cada um dar livre curso à imaginação, conduzido pelo regalo das imagens sonoras envolventes.

Pela minha parte, que não sei se sou ateu ou não, deixei-me levar enquanto os sons brincavam às escondidas, ora atrás das colunas, ora subindo às alturas. Tudo, digo eu, mais Céu do que Inferno, quiçá, de vez em quando, com alguma paragem nos graves...

Pus-me a imaginar o prazer das delícias e a tragédia das labaredas de que oiço falar e, de repente, senti-me a materializar uma e outras, pois que de ambas tenho, como toda a gente (até Saramago...) uma visão terrena a concretizar as falas biblicas que tanto respeito merecem a muitos.

Foi então que, inspirado naquelas vagas de sons, disse de mim para mim: o Céu, para ser convidativo como dizem, só pode ser um conjunto personalizado do que é agradável nesta fase terrena da humana existência - afectos, palavra certa, músicas, leituras e obras de arte que mais impressionam, gestos que melhoram o dia-a-dia dos outros, terrenas paisagens seleccionadas, silêncios, uma boa soneca, todos os prazeres, os da carne, os do cozido à portuguesa e similares (a ver caso a caso), mas, sobretudo, o dos sorrisos (melhor do que o das gargalhadas...Salvo as das crianças...) dos mais novos. A volúpia de estar - não estando. A Paz.

Depois, depois, para os tidos como maus em vida, um escaldão de pés, o jejum nos limites da humana capacidade, os telemóveis e quejandos a tocar permanentemente, o degredo da verdade sem disfarces, a prática obrigatória do bem, numa atmosfera sem órgãos que fizessem sonhar.

Tudo, apesar de, explicitamente temporário, como que a abrir portas para uma vida sem muros entre o Bem e o Mal. Para que morrer pudesse ser continuar - continuar, de imediato ou não, vivendo...vivendo "na maior..." Sem as pasmaceiras que se ouvem por aí em diferentes capelinhas...

Adivinha


D. Francisco Manuel de Melo autorizou-me...

"Dez e dez não são vinte, com cinquenta faz onze ..." *

Adivinha dita pela minha tia Helena (agora, sem fala, algures, nuns "cuidados intermédios"), que explicou ter sido a mãe (minha avó, portanto) que lha ensinou.

Bem-haja, D. Francisco!


* 11 horas.

Rua do Jardim


Lembradas as cartas de marear a que se referiu D. Francisco Manuel de Melo, não quero abusar, mas, embora estejamos em regime WEB, arrisco um pedaço de...de saudade para os que me são mais fiéis - não desfazendo...





"Grande Lisboa, 2007


Nascido em Lisboa, pais entregues, em paz, às permanentes transformações da natureza, um dia deu-me a veneta da saudade e, do alto do zimbório da basílica da Estrela, jardim e ruas conhecidas a meus pés, consentiram-me um filme amador. O sr. padre disse que sim, ter-me-á sentido forte no querer, e abriu a excepção, em tempo de bombas escondidas...

Subi não sei quantos degraus e desviei-me não sei quantas vezes, no caracol, das armadilhas da electricidade encanada que me íam atrapalhando o "heroísmo".

Aqui uma caixa a rebentar de fios, ali um holofote à espera da noite, em toda a parte luzes apagadas e, de fora, o sol a alumiar os degraus daquela espécie de saca-rolhas em pedra rumo à varanda, quase até à cruz mais alta da basílica, a léguas das nuvens que, naquele dia, no céu mais luminoso do mundo, borregavam a minha cidade.

Levei fados comigo. Gravados em geringonça moderna. Músicas e vozes escolhidas, com sentimento, em solo caseiro, quase retiro.

Máquina de filmar à tiracolo e muita, muita vontade de, lá do alto, ausentes presentes, lembrar, microfone aberto, jogos de pião, baloiços, corridas, pulos, berlindes, gargalhadas, pão com manteiga, sombras, árvores, namoros, janelas. O fumo das castanhas, o "jardim da burra" (da Sagrada Família, dizem os guias turísticos), os eléctricos Prazeres-Graça, os formigueiros de gente, as bancas dos jornais, o expedidor da Carris. Os funerais. Os funerais, sim. Que os houve de grande pompa e sentimento a partir daquele adro cheio de pompons à volta. Como o de Amália, que foi cantado.E muitos, muitos outros com flores que esconderam carretas a 10 à hora.

Estou grato ao sr. prior da basílica da Estrela (mais tarde, bispo) por me ter deixado ver o telhado da minha velha e esconsa casa. Estou grato ao sr. prior por me ter autorizado a emoção de, só, nos píncaros, estar mais perto, numa assentada, das muitas ruas que conheceram passos que não voltarei a ver.

Havia no ar uma oração. De que agora faço esta espécie de carta ao depois de amanhã, num blog que hei-de dar a ler...Não sei, ao certo, quando.





PS
Antigamente, no cinema Paris, a dois passos da basílica passavam fitas todos os dias às 15 e às 21 horas (a minha mãe, das suas águas furtadas, via-me entrar e dizia-me adeus...). Houve uma época em que, em certo dia da semana, às 18.30 h, tínhamos um programa de variedades ao vivo. Agora o espectáculo são as ruínas do edifício - há largos anos. Mas, do zimbório, quem não souber também não vê..."

Carta de marear


Estreante na NET, anos depois de décadas de prosa avulsa na imprensa, com 33 mensagens aqui publicadas em poucos dias, é altura, penso, de citar D. Francisco Manuel de Melo para que, ao deslizar pelo que está escrito, o meu eventual leitor tente, fazendo uma paragem às quatro rodas... reflectir e dar-se bem conta de que...



"...nesta carta sucede (sucedeu) o que nas cartas de marear, que quem as vir assim cruzadas de linhas e riscos, que se comem uns aos outros, parece que tal confusão não pode haver que se desempece; e na verdade não é assim; porque aquelas linhas todas são umas próprias e apenas passam de quatro principais; mas para fazer mais fácil o nosso uso, se multiplicam."



É isso.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Manuelina


Um dia destes, numa movimentada rua de Lisboa, cheia de montras sedutoras, dei comigo a, sem pressas, ir na conversa do costume e, de vez em quando, parar para matar curiosidades... Acontece que comecei a aperceber-me que, uns cinco metros atrás de mim, vinha um indivíduo, com Bilhete de Identidade perpétuo mais recente do que o meu, que parava sempre que eu o fazia. Aconteceu uma, duas, três vezes...

Então, chegado a uma esquina, à beira de um jardim, sem mudar a minha trajectória, parei e deixei o fulano passar-me à frente, não só para lhe "tirar o retrato", como para ver em que iam parar as modas...

Pimba: o tipo passou-me ao lado, mediu-me e, zás!, uns vinte metros adiante, estancou - de costas para mim. Aproveitei para tentar tirar a prova dos nove: com o cavalheiro virado para a frente, desviei-me, rapidamente, para o lado, uns dez metros, de forma a perceber, se o fulano se virasse, em campo aberto como era o caso, o que é que faria na hipótese de me querer "rever"...

Catrapus, o tipo voltou-se, não me lobrigou onde julgava que eu estava e fez, de imediato, o gesto revelador... Pelo meu lado, confirmei, de imediato, inequivocamente, que estava a ser perseguido.

"Para quê?...", foi a pergunta que fiz a mim próprio. "Talvez pense que sou um antigo camarada de armas que não vê há muitos anos...; talvez seja um larápio à espera que eu entre numa rua menos movimentada...; talvez... talvez...

A verdade é que, pensando melhor, eu levava pendurada ao pescoço uma bolsa daquelas da tropa que, vistas bem as coisas, devia parecer "anafada"...

Decidi, então, ir sentar-me num banco de jardim, onde já estava outro cidadão, e ali, a uns cinco metros de uma paragem de autocarro, aguardar...

O tipo viu-me sentar e, em menos de nada, foi para essa paragem, nitidamente na esperança de que eu me cansasse de estar sentado...

Passaram largos minutos. As posições relativas mantinham-se. Foi ocasião para eu sacar da máquina fotográfica que trazia dentro da bolsa e, num gesto rápido, fazer um zoom e registar-lhe a silhueta...Sem ele dar por isso, claro.


Entretanto, o fulano deve ter percebido que eu estava ali de pedra e cal e saiu da paragem, indo especar-se alguns metros atrás do banco onde me sentara...a pensar...

Pensei, pensei... Até que a solução encontrada foi esperar ali, a dois passos da paragem do autocarro, que a eventual carreira passasse e eu, numa corrida, surpreendesse o perseguidor, tomando o transporte mais à mão para...para algures, deixando-o sem solução no jardim que ambos haviamos "escolhido" como cenário até àquele momento...

Aconteceu, então, o imprevisto: ao fundo da rua apareceu o bus esperado, ambos corremos para a paragem, só que o potencial gatuno (?) era mais novo do que eu, correu mais depressa e... e entrou primeiro no autocarro para Belém, onde terá viajado sem mim, que fiquei a vê-lo seguir, depois de ainda lhe ter perguntado se queria alguma coisa... Feita a "manuelina", achei-me, finalmente, só. E tranquilo.

Cântaros


Classifico o cântaro inteiro. Elegante para o género. Quase no feminino. De cima para baixo, lábios grossos e pés de barro (paciência, são de barro...) bem aprimorados.

Vinte valores.

Não há sinais de quaisquer danos na sua estrutura visível. Não verte. Equilibra-se bem, sem apoios.

Vinte valores.

Está na fonte à espera que o encham. Vai cumprir a sua função, estou convencido. Melhor, com certeza, do que o irmão que está a seu lado e a quem partiram uma asa. E bastante melhor do que um outro colocado mais atrás, a que falta um pedaço de barro, digamos, um pouco acima da cintura... Doze valores.

Mas...

Não se podem dispensar capacidades.

É tudo. Apeteceu-me "dissertar" acerca de cântaros.

Fados


Passados que foram cerca de escassos 10 dias de blogues, permita-se-me que dedique especialmente este Momento, longe de qualquer "Café Literário", a sério ou a fingir, no caso, sem música, nem antes nem depois, ao, quiçá, único ouvinte que, numa corrida, se sentou à minha frente, numa enorme sala improvisada, mas quase cheia, para conseguir perceber o que havia para dizer, por cima de ruídos de copos e alheio a cheiros, atmosferas políticas e outras, previstas, mas não acauteladas. Lá, nas Traseiras do Litoral, de que tanto gosto.


Da que esteve para ser parte da introdução pessoal destes blogues, aqui fica prosa...

Com dedicatória.

"...Não me apetece fazer um diário, que o género parece de reputação discutível, apesar de , por exemplo, Vergílio Ferreira ter dedicado 3532 páginas, formato A5 (edições Bertrand), no que "amaldiçoou", pelo menos, 165 vezes ("merdelhices", "cartase de velho", "prosa merceeira", "onanismo literário", "escrita deslassada", etc)...

É claro também que se pensasse que "chegado aos 70 agora a vida é mais fácil porque é tudo a descer" (V.F.), me deixava escorregar e nem sequer metia o bedelho na matéria, mas, como me sinto em forma, aí vai escrita que é mais altura dela do que de palavras soltas que o tempo leva...São blogues, meus senhores, são blogues, neste moderno (?) suporte feito de sei lá o quê...Escritos como quem faz filhos. Com prazer. Sem prostituições. Como, apesar de tudo, Vergílio Ferreira ditava o seu diário: "...em mangas de camisa e às vezes em cuecas." Ou nem isso, acrescento eu, que, como é visível, penso, me apresento para a função quase sempre como vim ao mundo..."

Frases


"Quem não sabe arte não na estima"

Camões

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Mensagem para leitor a haver


Este blog, 10 madrugadas depois de ter começado "esta conversa", tem, peço desculpa, um destinatário especial. Vive numa aldeia, nas Traseiras do Litoral, e, um dia destes, furando a cortina de barulhos e odores que se verificavam na rectaguarda da improvisada sala disponibilizada, veio ouvir-me sentado, quiçá, numa das poucas cadeiras do "auditório" onde chegava em verdadeiras boas condições o que era dito.



Conheci-o pessoalmente nessa altura.



Amável, confessou-se, então, meu interessado, mais do que ouvinte, leitor do que tivesse escrito ou viesse a escrever... São para ele, portanto, com o pedido de as dar a ler a quem for, de facto, das leituras, as brevíssimas palavras que aí vão... Poucas porque quem vive no que há quem chame Interior (nem sempre com as melhores intenções...), tem, bastas vezes, mais que fazer do que dar atenção a estes fados...



"...Não me apetece fazer um diário, que o género parece de reputação discutível, apesar de, por exemplo, Vergílio Ferreira ter dedicado 3532 páginas , formato A5 (edições Bertrand), no que "amaldiciou", pelo menos, 165 vezes ("merdilhices", "cartase de velho", "prosa merceeira", "onanismo literário", "escrita deslassada", etc)...



É claro que também que se pensasse que "chegado aos 70 agora a vida era sempre a descer" (V.F.), me deixava escorregar e nem sequer metia bedelho na matéria, mas como (será cãibra?...) me sinto capaz de "soltar rolhas", aí vai

Musa sertaneja

Xiquexique, mucunã
Raiz de imbu e colé
Feijão brabo, catolé
Macambira, imbiratã
Do pau-pedra e caimã

A parreira e o murrão
Maniçoba e gordião
Comendo isso todo o dia
Incha e causa hidropisia
Foge, povo do sertão!

Versos de Nicandro Nunes do Nasciment0 e Bernardino Nogueira,
cantando as epopeias da fome de 1877

"Quarto de Despejo" - pão e sabão


O prometido é devido: Catarina Maria de Jesus, favelada, semi-analfabeta - ou não?...

"Levantei cinco horas para ir buscar agua. Hoje é domingo, as favelas recolhem agua tarde. Mas eu já habituei-me levantar cêdo. Comprei pão e sabão. Puis feijão no fogo e fui lavar roupas. No rio chegou Adair Mathias, lamentando que sua mãe tinha saido, e ela tinha que fazer almôço e lavar roupas. Disse que sua mãe era forte, mas agora lhe puzeram feitiço. Que o curador disse que era a feiticeira. Mas o feitiço que invade a familia Mathias é o alcool. Esta é a minha opinião.

A D. Mariana lamentava que seu espôso estava demorando a regressar. Puis as roupas para quarar e vim fazer o almôço. Quando cheguei em casa encontrei D. Francisca brigando com meu filho João José. Uma mulher da quarenta anos discutindo com uma criança de seis anos. Puis o menino para dentro e fechei o portão. Ela continuou falando. Para fazer ela calar é preciso lhe dizer:

- Cala a bôca tuberculosa!

Não gosto de aludir os males fisicos porque ninguem tem culpa de adquirir molestias contagiosas. Mas quando a gente percebe que não pode tolerar a impricancia do analfabeto, apela para as enfermidades.

O Seu João veio buscar as fôlhas de batatas. Eu disse-lhe:

- Se eu pudesse mudar desta favela! Tenho a impressão que estou no inferno."

Purgatório


Mais osso do que carne, abundante de rugas, alto, vestido de restos, vinte e quatro horas o ano inteiro, conformado com a sorte do mesmo corpo que, pelas partes visíveis, se lhe adivinhava todo revestido de camadas de pó, amassado em suor acumulado, entrou na carruagem do metro a tentar vender não se percebeu o quê "para, à noite, comer uma sopa..." Dizia-se um sem abrigo. Encheu a carruagem, quase esgotada, com o grito, mas ninguém se mexeu... Deu ideia que o apelo, ainda que veemente, fora, no imediato, abafado pela conclusão, eventualmente, injusta: é droga...

Para quem, descuidado, seguia viagem, foi como se, de repente, alguém tivesse entrado no combóio e lançado um qualquer gás paralizante... Estátuas com olhos de gente voltados no mesmo sentido, era o que se observava.

Ao zero geral denunciado, correspondeu o "sem abrigo", da dúvida generalizada, com uma corrida no sentido da carruagem seguinte do conjunto, entretanto, parado. Foi o tempo suficiente para que, no espaço que ficara sem jeito, tivesse entrado nova figura da cidade que pede... Agora
um cego, escasso nas palavras, de que falava uma expressão facial onde os olhos nem sequer se viam, cobertos que estavam por excessos de sobrolhos... Foi coisa de instantes: houve naqueles, mais ou menos, quinze metros de combóio, talvez compaixão, mas, sobretudo, como que um lamento generalizado de bondades em risco e um abrir quase colectivo de bolsas para a caixa de
esmolas do cego, inequívoco Purgatório de almas em sobressalto...

E não aconteceu mais nada.

Ser ou não ser...


Mais osso do que carne, abundante de rugas, alto, vestido de restos, vinte e quatro horas o ano inteiro, conformado com a sorte do mesmo corpo que, pelas partes visíveis, se lhe adivinhava todo revestido de camadas de pó amassado em suor, entrou na carruagem do metro a tentar vender não se percebeu o quê "para, à noite, comer uma sopa..."



Dizia-se um sem abrigo. Encheu a carruagem, quase esgotada, com o grito, mas ninguém se mexeu... Deu ideia que o apelo, ainda que veemente, fora, no imediato, abafado pela conclusão, eventualmente, injusta: é droga...



Para quem, descuidado, seguia viagem, foi como, de repente, alguém tivesse entrado no combóio e lançado um qualquer gás paralizante. Estátuas com olhos de gente voltados no mesmo sentido, era o que se via.



Ao zero geral denunciado, correspondeu o "sem abrigo", da dúvida generalizada, com uma corrida no sentido da carruagem seguinte do conjunto, entretanto, parado.



Foi o tempo suficiente para que, no espaço que ficara sem jeito, tivesse entrado nova figura da cidade que pede... Agora um cego, escasso nas palavras, de que falava uma expressão facial onde os olhos nem sequer se viam, cobertos que estavam por excessos de sobrolho...



Foi coisa de instantes: houve naqueles, mais ou menos, quinze metros de combóio, talvez compaixão, mas, sobretudo, como que um lamento generalizado de bondades em risco.







terça-feira, 10 de novembro de 2009

Maria Helena Vieira da Silva




Eu sei que ainda estou "nisto" há pouco mais de uma semana. Mas ... Olhem, meus Amigos, calem-se se quiserem, mas, por favor, talvez em nome de, do, dos vossos valores, leiam e divulguem nos vossos núcleos (eu fotografei, garanto.Há uns tempos a esta parte, trago quase sempre comigo uma Canonzinha...) o que aí vai...

Próximo do Chiado, quase ao pé da rua da Horta Seca, em Lisboa, num prédio de esquina, mesmo na esquina, à altura de um primeiro andar, mais coisa menos coisa, há uma placa
que reza assim

A PINTORA

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA

NASCEU NESTE EDIFICIO

A 13 DE JUNHO DE 1908



e, exactamente por baixo, o seguinte anúncio
em letras e números garrafais

VENDE-SE/ALUGA-SE

91 371 00 68

21 340 51 90

Chiça, pim!

Grão a grão


Ontem em Lisboa (não vou dizer onde, por razões que se perceberão...), achei um cêntimo e guardei-o.

Hoje, a cerca de dez metros do achado anterior, apanhei do chão outro cêntimo...

Juro!

Já tenho dois cêntimos!...

Frases


"No tempo dos meus princípios difíceis redigira muitas vezes, para senadores com dificuldades
de ideias ou de burilar frases, alocuções de que eles acabavam por se considerar autores."

in "Memórias de Adriano" de Marguerite Yourcenar

"Sem samba e sem literatura"


Chegado ao Rio de Janeiro, ganho em oportunidade anterior o prazer do imediatamente visível na paisagem mais escancarada, seguiu-se, em 1979, em nova ida à ex-capital federal brasileira, a penetração possível no que estava (e continua agora) por trás das areias das praias, no morro que, ao longe, é todo formosura. Quis a favela com lentes de ver ao pé. Já tinha no meu registo a imagem dos ranchitos que bordejam, na sua alvura mentirosa (para turista ver...), a estrada que, na Venezuela, vai do aeroporto à cidade de Caracas.

Tratava-se agora de, olhar virgem perdido, ganhar conhecimentos para além da beira-água ou das brancas casas, também ali, pintadas de disfarces engana-turistas, na Cidade Maravilhosa.

Desenganado, entretanto, quanto à possibilidade de viver por dentro o que os guias turísticos não incluem, procurei na documentação existente algumas das respostas escondidas nos saberes locais. Conversa informal, algures em Copacabana, e a sugestão: "veja se consegue encontrar um livro que circula por aí e que é o diário de uma favelada..."

Vinte valores: aqui o tenho. Logo o consegui. Intitula-se "Quarto de Despejo", numa edição popular (90º milheiro) que a escritora Dinah Silveira de Queiroz considerou "sem samba e sem literatura".

Não fala das favelas do Rio. Fala da favela, "do cerne da desintegração social", na palavra de uma semi-analfabeta, seleccionada, mas não censurada, parece-me. É por isso mesmo que a trago para aqui, para este blogue que pretende, modestamente, dar um contributo, no caso, para fixar o que, com tons e modernas roupagens, vão continuar a ser favelas, ranchitos ou casais ventosos de acesso difícil até não sei quando...

"Aqui nesta favela agente vê coisa de arrepiar os cabelos". In "Quarto de Despejo", que li pela primeira vez no Rio de Janeiro, em Maio de 1979, e de que vou transcrever, a partir de hoje, algumas passagens, para que à NET se acrescente, creio, sem música, a voz homenageada, mas pouco revelada, de Catarina Maria de Jesus, no "Quarto de Despejo", que guardo na minha estante ao lado da "Geografia da Fome", para ser mais fácil localizá-lo.

"Hoje o tal Orlando Lopes veio cobrar a luz. Quer cobrar ferro, 25 cruzeiros. Eu disse-lhe que não passo roupas.

Êle disse-me que sabe que eu tenho ferro. Que vai ligar o fio de chumbo na luz e se eu ligar o ferro a luz queima e êle não liga mais. Disse que ligou a luz para mim e não cobrou deposito.

Mas o deposito já foi abolido desde 1948.

Êle disse que pode cobrar deposito porque a Light deu-lhe plenos poderes. Que êle pode cobrar o que quiser dos favelados."

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