terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XXII)


ENTREVISTA com o Arq. Manuel Vicente (cont.)

Como íamos dizendo...

Esse equipamento urbano e a valorização através de monumentos que agora parece que polvilham a cidade, são para ficar, é uma época, são padrões?... Estou a ver a cidade cheia de símbolos...

Não sou um grande entusiasta dessa política. O monumento é a cidade. Acho que o grande investimento é na cidade e não um pouco nesses fogos de artifício do monumento aqui, monumento acolá. A prova está um pouco feita: acho que nenhum dos monumentos que estão feitos tem uma qualidade, um interesse por aí além. São desiguais. Há uns um pouco melhores, há outros um pouco piores. Estão três feitos. Pelo que pude ler nos jornais, a iniciativa já mudou.

Neste momento, o próprio governo pediu à população que lhe sugerisse monumentos e sítios...Para o último monumento de que tenho conhecimento já foram consultados vários artistas e não foi escolhido nenhum...

Também me parece que fizeram uma encomenda qualquer - tudo aquilo me parece bastante inútil, não é que a arte tenha que ser útil - mas penso que não são gestos de necessidade, de desejo ou de vontade... São encomendas... Assim: "faça-me lá não sei quê, não sei para onde..."

E prédios de vinte e trinta andares que estão completamente vazios?...

Prédios completamente vazios significam política errada do governo que, unilateralmente, lançou uma série de hastas públicas, inflaccionando o custo dos terrenos de tal maneira que a seguir houve um excesso de oferta e não há procura com capacidade financeira para resolver...

E escolas sem população escolar?...

Isso terá a ver, provavelmente, com uma deficiente gestão dos equipamentos... Em Portugal, como se sabe, foi dito que havia escolas secundárias, liceus e hospitais abandonados que não eram ocupados por falta de verbas para os equipamentos...

Mas estes foram construídos nos últimos dez anos...

Penso que uns são problemas administrativos... Quando me diz que há escolas vazias não é por falta de população escolar, é, provavelmente, por falta de professores ou porque terão sido mal planeadas...

Ou estarão à espera que os prédios de 20/30 andares se encham?...

Não penso que seja isso... Penso que as escolas foram feitas em resposta a planos concretos, a projecções concretas dos Serviços de Educação, que decidiram que era necessária uma escola ali com uma capacidade X, Y ou Z. É evidente que, se calhar, houve uma avaliação deficiente de tudo isso, houve uma projecção de padrões europeus numa realidade que aqui é bem diferente.

Houve uma projecção de um sistema escolar centralizado, como é, se calhar, o sistema escolar português. Se calhar, o que há sempre é falta de maturidade, o que se verifica é amadorismo, falta de conhecimento dos problemas de um corpo de funcionários importado de dois em dois anos ou de três em três anos, que chega e toca o melhor que sabe e o melhor que sabe é aquilo que aprendeu na escola e tem a ver com realidades e padrões de referência que, eventualmente, não têm aplicação em Macau, onde é preciso ter muita imaginação, onde é preciso ter um conhecimento muito grande das chamadas especificidades locais, que passa por ser uma população etnicamente muito dividida, em limite, linguisticamente dividida, porque também há chineses que não falam cantonense. Modernamente, em Macau, só falam mandarim...

Por isto, por aquilo, por aqueloutro, porque há as escolas da igreja, porque há escolas dos grupos pró-China, porque havia as escolas pró-Taiwan (não sei se ainda há se não há...) porque havia as escolas inglesas da diocese e havia as escolas luso-chinesas do Serviço de Educação. É um panorama demasiadamente complexo para uma pessoa poder chegar aqui e dizer: "tem que haver uma escola primária por cada 300 fogos ou por cada 25 famílias..." Se calhar, no fim, fizeram-se escolas com esse critério... Não sei...

O que lhe sei dizer é que Macau tem um elevado índice de escolaridade, que a população tem muito bom aspecto... Vê-se sempre uma data de miúdos na rua bastante bem vestidos, com o seu "blazerzinho" azul e elas com bibe branco e, portanto, nesse aspecto, o que possa haver de disparate de planificação é da responsabilidade, de facto, das verduras das pessoas que chegam, têm o rei na barriga e acham que sabem tudo e começam a mandar fazer como sabem...

Não estamos também em presença de um fenómeno de especulação imobiliária?

Isso estamos sempre... Até nas economias mais desenvolvidas e mais estáveis, a imobiliária é sempre um dos indicadores mais fortes da saúde ou da doença daquela economia.

Macau não tem produção nenhuma, importa tudo o que consome e exporta tudo o que produz. O que se produz em Macau não é aqui consumido, é exportado. Macau também importa as crises e tem que viver com elas. Tem uma grande fragilidade, uma massa específica pequena a todos os níveis... Penso, no entanto, que a Administração poderia ter prevenido, através de uma política menos ingénua, a gravidade que a situação atingiu.

Acho que a questão das hastas públicas é uma arma de dois gumes, aparentemente, é uma transparência, no caso específico de Macau, se calhar, é uma imprudência, porque vai acontecer no momento em que havia uma enorme corrupção na China e que toda a gente sabia que Macau era uma enorme lavandaria dos dinheiros esquisitos chineses.

É evidente que, quando se querem branquear dinheiros esquisitos chineses não se olha ao preço, quer-se é ter uma justificação qualquer para aquele dinheiro e compra-se um terreno por não importa qual preço... A seguir é obrigatório construir nesse terreno, claro.

Tudo isso ainda continua a ser uma operação possível dentro das facilidades de crédito que havia e dentro das origens um pouco estranhas do dinheiro. Superabundava... Isso levou a uma situação que, neste momento, não tem resolução a curto prazo. A oferta que a imobiliária tem para fazer não tem procura correspondente, sobretudo, em termos de custos que foram atingidos a partir da especulação realizada sobre os terrenos.

O imobiliário é o novo "casino"?...

Macau e a economia do Delta é sempre um "casino"... Quando eu cheguei cá, em 62, havia um homem a vender camisas para a Dinamarca. Ao fim de três meses, havia cinquenta... Ao fim de seis meses, estavam todos falidos, porque a Dinamarca comprava as camisas de um homem, não comprava as camisas de cinquenta... Foram todos fazer outra coisa...

E, nesse contexto, o aeroporto?...

Não faço ideia nenhuma. Eu estava muito entusiasmado, porque parecia-me que o aeroporto era uma boa aposta, porque tinha, simultaneamente, um aeroporto internacional e um aeroporto doméstico. Portanto, Macau era um aeroporto internacional da China, onde uma pessoa andava uns passos, pegava na mala e voava para qualquer cidade chinesa.

É evidente que, paralelamente com isto estava a construir-se o aeroporto de Zhuhai... Neste momento, há uma proibição um pouco artificial do governo central chinês da utilização do aeroporto de Zhuhai para voos internacionais, mas não sei se vai aguentar essa pressão. Li, entretanto, um dia destes, que Zhuhai faz parte dos três aeroportos da China que podem receber o Concorde... Isto quer dizer qualquer coisa... Parece-me muito artificial e muito contra natura manter-se esse aeroporto doméstico e pôr Macau como aeroporto internacional... Mas já está está feito, já está feito... Alguma coisa há-de acontecer... Nem que seja ser urbanizado...

No fundo, o seu futuro não me preocupa muito: não se ficou a dever dinheiro a ninguém, não se criou um ónus para a população de Macau com a construção daquele aeroporto. Está ali, está ali... É como o Porto Exterior: esteve lá durante 30 anos e não aconteceu mais nada... Agora já tem duas cidades em cima... Os aterros do Porto Exterior foram feitos com grande esforço: vieram os holandeses fazer os diques e havia uns marinheiros inteligentíssimos que diziam que aquilo ía ser o porto de águas profundas de Macau. Depois não foi, já lá tem cidades em cima... A Acabou em 35, estamos em 95... Sessenta anos depois são duas cidades. Uma ainda está vazia, mas há-de encher-se. A outra está cheia...

(cont.)

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