sábado, 13 de março de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XXXI)



"Cantando espalharei por toda a parte..."

ENTREVISTA com o Comandante Sá Vaz


Sr. Comandante, fale-me de si...

Sou oficial de marinha, beirão, da Serra da Estrela, mesmo do alto, do Folgozinho. Fui para a Escola Naval e depois andei por seca-e-meca, por vários sítios onde a Marinha leva as pessoas: seis anos na guerra da Guiné e depois da passagem por outros serviços, estou aqui no Museu de Marinha de Macau e também como presidente da Comissão Territorial das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, que, em conjunto, me tomam o tempo todo.

Quanto anos tem de Macau?

 Dois anos e meio.

É, portanto, um homem da história recente do território. Encontrou algum aspecto que, para além das razões compendiadas no passado, singularizasse  Macau das regiões vizinhas?

Macau é um pouco "sui generis". E "sui generis" porque o seu nascimento é originado por portugueses.  São, por isso, dois modos de ser e estar, perfeitamente distintos, que convivem ao longo de 400 anos.São culturas que não se miscegenaram porque são muito vincadamente sentidas pelos naturais, com uma  tradição cultural, que, diria, quase impossível diminuir, e os portugueses também com uma importante cultura, igualmente, impossível de subordinar a outra.

Portanto, estas duas culturas, convivendo, não se conseguem miscegenar, dado os seus traços fundamentais, mas conseguem, de alguma forma, influenciar-se e, portanto, é lógico, é natural, que os habitantes que aqui encontra em Macau procurem algumas das suas raízes através da influência portuguesa, que se faz sentir através da própria vestimenta até à cozinha.

Tudo isto diferencia, nitidamente, um habitante de Macau de um habitante das redondezas. O das redondezas é mais chinês do que o chinês de Macau. O chinês de Macau é um chinês, diria, mais atenuado por esta influência que se faz sentir e que penso ser importante.

 No fundo, pretendemos um pouco que Macau venha a representar no futuro, em certa medida, a influência dos portugueses, como, aliás, noutras paragens...

O que só prestigia os dois conviventes, que conseguiram conviver de uma forma salutar e sem guerras.

 Na parte histórica, é importante  perceber como é que foi possível o convívio, sem guerras, entre gentes tão distintas.

Isto torna, de facto, Macau um caso "sui generis", um caso que deve ser preservado. No meu entendimento, é fundamental que procuremos juntos dos macaenses que, depois de 99, aqui vão ficar, que tenham amor às suas raízes, tentando, de alguma forma, incentivá-los a conhecer bem o seu passado comum.

Que fazer, sr. Comandante, para concretizar no dia-a-dia esses objectivos?

Nomeadamente, aqui no Museu, estamos a fazer um esforço muito grande para pôr em paralelo a história portuguesa e a história chinesa das navegações.

Não há necessidade de dizer que uma é melhor do que a outra, não! São duas coisas, que existiram nos seus tempos e que, portanto, devemos preservar, estudar e conhecer.

Cheng Ho foi um grande navegador, um pouco antes de Vasco da Gama, que andou aqui, por todo o Indico, e chegou a Momboça, como nós. São situações importantes para a história dos dois povos e, por isso, devemos mantê-las em igualdade de circunstâncias, reafirmando a realidade dos factos. As pessoas depois interpretarão e tirarão as conclusões e ilações que entendam mais convenientes. Isto segundo a orientação do Museu Marítimo.

Entretanto, também gostaria de frisar que, no largo da Barra, onde os portugueses chegavam, temos aquilo que chamo um verdadeiro museu vivo da arquitectura. A ponte do cais que observamos é uma ponte que se pode encontrar em Angola, em Moçambique, na Guiné. Igual, exactamente igual, às que fizemos em todo o mundo.

Ao mesmo tempo, vê-se ali, convivente, uma arquitectura religiosa típica chinesa, no templo da deusa Á-Má, tendo ao lado o Museu, a parte onde se faz a exposição, com uma arquitectura moderna portuguesa.

É um padrão cultural. O arquitecto, que era oficial de marinha, teve a inspiração de, na construção daquele museu, ter imaginado um junco com uma caravela, que são os símbolos marítimos dos dois povos. Miscegenou-os, embora mantendo a estrutura típica de cada um deles e com leitura fácil de fazer...

Não se trata de um edifício qualquer, é um padrão cultural onde as duas culturas estão expressas na pedra.

Penso que isto é importante, porque leva os próprios homens de Macau a sentir mais a sua própria terra e não apenas uma China imensa. Há uma especificidade que os torna diferentes. É essa, aliás, também uma das preocupações que temos na Comissão dos Descobrimentos, onde estamos a procurar auscultar as escolas chinesas, perguntando que apoios precisam, o que querem...

Por exemplo, posso dizer-lhe que vim agora de Nanquim, onde estive num Congresso de Descobridores, na comemoração dos feitos de Cheng Ho, e os historiadores presentes disseram-me que não tinham livros chineses por onde pudessem saber como foram os descobrimentos portugueses, como eram os barcos portugueses...

O Museu assumiu, de imediato, o assunto e já está a indicar livros em chinês sobre os navios portugueses. Ao mesmo tempo, enviámos livros de Jaime Cortesão sobre os Descobrimentos, que estão, nesta altura, em Pequim para tradução e posterior publicação aqui.

Em suma, estamos a tentar levar aos outros o conhecimento de toda esta comunidade onde Portugal já está há 450 anos: o que é que fomos e porque é que fomos... Às autoridades chinesas competirá, depois, decidir sobre os dados que lhes proporcionarmos.

Decorridos séculos de convivência racial, o que é que, de facto, vai permanecer?

Penso que é muito difícil manter uma identidade totalmente diferenciada de toda esta massa imensa que é a China, com os seus milhões de habitantes. É uma diferença muito grande. Agora, admito que poderão ficar aqui marcos indeléveis da nossa passagem. Estou a falar-lhe, por exemplo, nas fortalezas, que têm uma história (isto é importante dizer às crianças) que faz parte integrante da história de Macau.

Quando os holandeses tentaram invadir este território, se não fossem vencidos pelos portugueses e macaenses que aqui estavam, Macau seria totalmente diferente. Portanto, isto faz parte da história das pessoas que aqui ficam e que aqui nasceram e viveram.

Temos que ensiná-lo, temos que dizê-lo, temos que levar os próprios professores chineses a ter amor à sua terra, a esta luta que foi também dos seus antepassados. Isto é que os individualiza.

Neste sentido, vamos desenhar um programa, levando os professores de História chineses a Portugal para eles verem e compreenderem melhor essa razão, porque são eles que vão dizer às crianças e mostrar-lhes o que é que foi o seu passado, porque é que o seu passado é diferente. Mas de uma forma que se sintam honrados por terem esse passado. Só assim eles serão os primeiros a preservá-lo.

Quando nós estamos a dizer, e dizer com bastante galhardia, que temos, no Museu, uma média de 900 visitantes por dia, ao longo do ano, isto é um número imenso... Os chineses aquele espaço, porque estão lá permanentemente. Ora isso é uma garantia de que vai continuar, porque a própria população a defendê-lo. Porque lhe interessa, porque foi concebido com imaginação, com inteligência.

Se tivermos capacidade, ainda nestes anos, de fazer mais coisas, com essa mesma inteligência e com essa mesma imaginação, de certeza que, os próprios chineses, defenderão o resultado recebido e terão prazer em mostrar aos vindouros, e à parte turística (para que não seja só o jogo...), aquilo que, de facto, os seus antepassados criaram. E conseguiram desenvolver.

Acha, então, que Portugal em Macau tem sido: missão, pimenta, aventura, o quê?...

Macau tem sido tudo menos guerra.Comecemos pelo seu nascimento. O seu nascimento aparece por cedência dos habitantes que aqui viviam, permitindo que se fizesse comércio. Os portugueses necessitavam do comércio e... começaram a comerciar...

Os chineses, com o seu sentido prático, viram que dali vinha dinheiro, porque eram pagos alguns direitos, e autorizaram esse comércio. A partir daí, criou-se como que uma simbiose, sem conhecimento da Corte Suprema, ou com o seu beneplácito. E assim se foi vivendo ou convivendo.

Ao longo da história de Macau houve alguns conflitos, mas conflitos que não degeneraram em guerra. Foram conflitos que resolvidos pelos próprios chineses de Macau, que intercederam junto da parte da China, de forma a fazer entender melhor o que os portugueses pensavam. Houve aqui como que uma "tradução..." Os medianeiros chineses que, percebendo bem a mentalidade portuguesa e conhecendo a mentalidade chinesa, souberam, diplomaticamente, actuar e resolver conflitos... E só assim se admite que tenhamos estado aqui consentidos - contrariamente ao que se passou em Hong-Kong, que é uma conquista pelas armas. Macau não tem nada disso na sua história. A própria autoridade de Macau, é uma autoridade emanante das pessoas que aqui estavam.

Nessa comunidade criaram os "homens bons" e construíram o Leal Senado, sem imposição de quem quer que fosse. Foram eles, aliás, que se autogeriram. Só mais tarde, quando os holandeses tentaram invadir Macau, é que se tornou necessário pedir à Coroa que pusesse aqui uma defesa. É nessa altura que vem um governador, que se criam muralhas, que se cria aqui um sentido de defesa que os próprios chineses entendiam como sendo a defesa da sua própria costa.Aliás, os canhões nunca estiveram virados para a China, foram sempre canhões para defender toda esta zona, numa colaboração mútua de grande interesse e até com proveito recíproco.  Os próprios portugueses, como eram hábeis na navegação, conhecedores destes mares, ajudaram os chineses a derrotar a pirataria que havia por aqui...

Macau é, pois, esta miscelânea, este fruto de confraternização de povos que souberam chegar a um ponto final de mãos dadas.

(cont.)

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