quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

1972-Falas muito breves do povo de S. Vicente (Cabo Verde) - gravadas ao vivo

Mal saí do Infante D. Henrique, acabado de aportar no Mindelo, meti-me num táxi com a Rosa, minha companheira de cruzeiro, e pedi ao motorista que subisse, subisse sempre para o deserto das serras...

- Mas "aí" não há nada...

- Leve-nos, por favor. Queremos ver o nada...

E já o carro bufava por todos os lados, montanhas descampadas acima, quando, de repente, gente à vista, parámos.

- Onde é que vão buscar água para beber?... - perguntei à anciã que descobrira ao longe.

- Cavamos, cavamos sempre... Vem lá do fundo... A gente tem que matar a sede, não é?!... É precisa muita, muita força para lutar.

- Vive só?

- Sim.

- Como é que se chama?

- Antónia Maria Brito.  80 anos.

- Linda idade! Só com o céu, a terra ... Cante-nos uma morna, por favor...

- Não sei cantar!... Ai Jesus!...

- Vá, uma morna...Eu sei que o povo de S. Vicente...

- Não sei cantar...

- Vá... só uma...

E Antónia Maria Brito, com aquela voz dolente que a defendia da solidão, cantou... Cantou sem nos ver a lágrima que se soltara...

Está gravado, "vê-se" na voz e resume "o que se passou": as falas,  a paisagem-desafio. A saudade que ainda hoje não me larga, daquele tudo feito de quase nada, que agora me deu para ir buscar às profundezas do que foi...

- Tudo seco... É uma pena!

Nas mornas a síntese, o olhar para o longe que um dia se espera alcançar no fundo da alma...Ou da terra onde a água às vezes aparece como se fosse suor acumulado ao longo de séculos...

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