domingo, 12 de dezembro de 2010

Afagos do abecedário ( IV )

"(...) No entanto, confesso-lhe, meu caro Pessoa, que, sem estar doido, eu acredito no cubismo. Quero dizer: acredito no cubismo, mas não nos quadros cubistas até hoje executados. Mas não me podem deixar de ser simpáticos aqueles que, num esforço, tentam em vez de reproduzir vaquinhas a pastar e caras madamas mais ou menos nuas - antes, interpretar um sonho, um som, um estado de alma, uma deslocação do ar, etc. Simplesmente levados a exageros de escola, lutando com as dificuldades duma ânsia que, se fosse satisfeita, seria genial, as suas obras derrotam, espantam, fazem rir os levianos.

Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos de Mallarmé. E nós compreendemo-los. Porquê? Porque o artista foi genial e realizou a sua intenção. Os cubistas talvez ainda não a realizassem. Eis tudo. Depois, e não posso crer que os artistas desta escola sejam pura e simplesmente blagueurs, falidos que deitam mão desse meio para esconderem o seu cretinismo.

O mais célebre, o mais incompreensível destes pintores é o espanhol Picasso, de quem tenho visto imensos trabalhos antecubistas, esse homem realizou maravilhas - admiráveis desenhos e águas-fortes que nos causam por vezes - com meios mais simples - os calafrios geniais de Edgar Pöe.

Eu não posso crer que este grande artista hoje se transformasse num simples blagueur que borra curvas picarescas e por baixo escreve: O Violinista. Não, isto não pode ser assim. É claro que entre os sinceros e valorosos, fumistas se podem intruduzir. Como por exemplo aconteceu com o simbolismo na poesia (As Deliquescências de Adoré Floupette, que eram uma pastiche e que ingénuos tomaram como um livro real). Resumindo: eu creio nas intenções dos cubistas: simplesmente os considero artistas que não realizaram aquilo que pretendem. (...)."

1913-Mário Sá Carneiro a Pessoa.

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