segunda-feira, 28 de março de 2011

Canteiro de palavras ( XIII ) - John Bull











"Canal da Mancha, lado esquerdo.

Meu caro John

(...) De sua natureza desconfiadíssimo, o negociante do Porto não deixa penetrar quem quer no santuário da sua confiança mercantil. O seu compatriota que charuta na praça, que usa bigode torcido, que põe gravata garrida, que é tipo de chicotinho e de cavalicoque, infunde-lhe suspeitas e apreensões trágicas. Todo o estrangeiro que pela sua maneira de carregar nos rr inculque a possibilidade de ser francês é implacavelmente despedido dos escritórios com murmúrios de mau agouro, e logo que ele vire costas investiga-se com sobressalto se sim ou não foram empalmadas as penas de aço de cima da carteira.

Contigo, nem a mínima sombra de receio! Apresentas-te a esses austeros e taciturnos vestido como um jockey em viagem, de chapéu coco alvadio, rabona cor de mostarda, gravata vermelha ou azul Cambridge passada por um anel de ouro polido, cachimbo nos dentes, stick debaixo do braço, monóculo no olho.

Dizes-lhe: - Aoh! Vossemecê!... All right!... E em presença duma tal gravidade de aspecto, duma tão respeitosa cultura de linguagem, o burguês indígena da tua Rua Nova rende-se-te incondicionalmente com armas e bagagens para toda a espécie de negócio, e ele mesmo folga de repetir como tu, numa bonomia imensa:

- Aoh!... Yes ... all right!...

Toda a transacção feita sobre tais bases é a mais segura e mais firme transacção do mundo para o homem cauto da praça do Porto. Ele não sabe ao certo se tu vens de Southampton, se vens de Liverpool ou se vens de Manchester, nem se tens de teu mais alguma coisa do que o teu cachimbo, o teu stick e a tua égua derrabada. Para seu inviolável e perenal sossego basta-lhe que tu sejas o Inglês ... o Inglês do Candal, ou o Inglês de Matosinhos ... John, enfim! o grande John, o forte John, o inteiriço e desdenhoso John - da veneranda firma John and John!

Na região vinhateira do Douro as tuas atitudes são tão largamente senhoriais, tão convictamente dominativas que eu sempre cuidei, em pequeno, que eras tu o dono de toda aquela coisa desde os Padrões da Teixeira até Cima-Corgo!

No tempo da uva madura, desde meado de Setembro até meado de Outubro, o jantar ou o almoço das famílias é frequentemente interrompido pelo fac-totum que te precede, com a sua maleta em punho, e vem berrar de chapéu na cabeça à porta da casa de jantar:

- O Inglês! o Inglês! aí está o Inglês! O Sr. John!

O lavrador ergue-se então dum pulo, limpa os beiços à pressa, sacode as migalhas do colete, e voa ao teu encontro, sabendo que te desgostaria fazendo-te esperar.

(...) - Qual a produção?... quanto o preço de cada pipa?...

E tomas as notas numa carteira. Depois do que prossegues a tua excursão de quinta e quinta, despindo-te do lavrador com um breve gesto acenando com a ponta da luva ou com o cabo do chicote.

Na segunda visita, daí a três dias, análoga cena para fixar o preço e fechar a transacção:

- Eu compra vossemecê quinze soberanos pipa.

Proferida esta solene palavra na língua portuguesa de teu uso, entrecortada de plebeísmos aprendidos com os banqueiros de Massarelos e com os matulas dos armazéns de Vila Nova de Gaia, está fechado o negócio." *

in "John Bull" de Ramalho Ortigão

* ...e agora, todos contentes, cá estamos no Mercado Comum ... - acrescentaria eu.

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