"(...) Os filhos de Bacelar chamavam agora à madrasta "virgem em segunda mão", mas a verdade é que D. Rosa, após o desaparecimento do único homem que a amara, permanecia fiel à sua memória. A tal ponto que se tornara excessivamente orgulhosa, quase arrogante. Sem companhia desde os vinte e sete anos, resistia a todos os "convites" com firmeza.
Extasiava-se a olhar o piano sobre o qual, de quando em vez, enlevada, fazia deslizar as mãos. Vivia de um passado efémero e todo o seu comportamento tinha como suporte a recordação do que fora uma vida intensa ao lado de um simpático, mas, sobretudo, respeitado tesoureiro de finanças. "O Bacelar dizia..."; "O Bacelar fez ... "; "A valsa do Bacelar..." Os outros, os outros, os que tinham vindo depois, eram nada ... Tornara-se até mesmo ríspida e antipática. Com frequência, dava a sensação de ter esquecido as origens, o que irritava os que com ela conviviam. Nos píncaros da sua memória permanecia Lemos Bacelar, tesoureiro de finanças, único homem que conhecera na intimidade. De resto, D. Rosa Soares Lobo, vivia, sem alardes económicos, do aluguer de parte da casa que habitara com seu marido (os descendentes de Bacelar viam-na como a amásia do pai ...). Também emprestava dinheiro a juros, mas quase nada. As economias não abundavam. Levava, contudo, uma existência contemplativa - sem trabalhar. Dizia com frequência "a rico não peças e a pobre não sirvas" e assim escudada, lá se ia governando do passado, alimentando o seu dia-a-dia de significativo orgulho.
O piano que, para além das tabelas fiscais, representava toda a glória de um passado activo, era a sua grande vaidade. Silencioso desde a morte de Lemos Bacelar, apresentava-se como a manisfestação visível de uma certa cultura musical, de ouvido, à sombra da qual respirava mais fundo junto de familiares e amigos.
Fora à ópera duas vezes. E até acompanhara Lemos Bacelar numa inesquecível viagem de combóio a Andorra, organizada pela Caixa de Auxílio das Finanças. Nascera pobre. Desenvolvera-se a observar. Enviuvara prestigiada na aldeia. "Vive bem", dizia-se. "O sr. Bacelar até lhe deixou um piano ...", acrescentava-se. (...)"
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