"Meus senhores, apresento-vos Isidro Lobo, ilustre artista português, mestre da escola expressionista, caloiro de Paris, novo companheiro de tertúlia, amigo pessoal de ... de Vieira da Silva! - exclamou Lenoir num arrebatamento, onde só não era simpatia a mentira de quem se deseja mostrar sempre bem acompanhado.
Isidro sentira-se corar. "Amigo pessoal de Vieira da Silva ... "Mestre - mestre? - do expressionismo ..."
As palavras, contudo, têm o peso das pessoas que as dizem, mesmo que traduzam apenas falsidades. E Lenoir era figura tida como sabedora no universo intelectualizado das tertúlias de café parisienses - ou, pelo menos, daquela.
- Atenção, amigo Isidro, vem aí o maior tarado sexual de Montparnasse! Um bom pintor, mas um louco ... disse Lenoir, dando um abanão a Isidro. - É Pierre Robert, macho de um harém na Pigalle, mas companheiro seguro das tertúlias do nosso "boulevard". Já faço as apresentações ...
Pierre Robert, esquelético, quase dançando dentro das roupas desajeitadas que vestia, acabara, com efeito, de entrar no La Rotonde, depois de, minutos antes, ter dado uma espreitadela pelo Le Select, cem metros abaixo, onde também se reuniam habitualmente as gentes das artes de Montparnasse, desde que Montmartre, entre os anos vinte e trinta, de certo modo, perdera a seu favor o ceptro de ponto de encontro dos verdadeiros artistas de Paris.
- Senta-te aqui, meu querido amigo Pierre! Olha este é um português - Isidro Lobo, amigo pessoal de Vieira da Silva - convidou Lenoir, a querer fazer tertúlia. - Então como é que vão as tuas mulheres? ...
- Mal! Uma desgraçadas!... Já não sei o que lhes hei-de fazer ... Estão a sair-me caras ...
- Rifa-as ... - sugeriu-lhe Lenoir, a provocá-lo.
- Qualquer dia vou mas é pô-las a leilão. Peço para me alugarem o Moulin Rouge e vais ver ... Com um pouco de publicidade, os camones e os japoneses ficam de cara à banda. Um negocião!... Preciso de uns dinheiros para organizar aí uma bacanal em que tenho andado a pensar ... Coisa fabulosa!...
- Estás cada vez pior ... - interrompeu Lenoir. E no plano artístico, propriamente dito, que trabalho tens agora em mão?
- Bom, no plano artístico, estou a pintar um tríptico sobre o amor e o erotismo ...
- Eu logo vi ...
- Repara bem, cada quadro tem uma letra erótica do alfabeto ...
- Letra erótica?...
- Sim, um H, no primeiro.
- Como?...
- Sim, um H maiúsculo, ou seja, um homem e uma mulher nús, de pé, frente a frente.
- E depois?...
- A seguir, um A, também maiúsculo.
- ???
- Mulher e homem igualmente nús, mas beijando-se ...
- Então e o terceiro quadro?...
- No terceiro, no terceiro é apenas um I grande, adulto e, por isso mesmo, sem pinta nos ombros, de cabeça perdida ...
- Mas ...
- Mulher e homem, de pé, confundem-se num só ... Ou, se gostares mais, H de harém, A de amor e I de imoral ... Isto é, a imoralidade amorosa inspirada pela minhas raparigas ...
- Oh, meu caro Pierre, imaginação não te falta. És o mais simpático tarado que conheço. Aprende-se muito contigo. Como vê, - voltava-se agora para Isidro - aqui tem um apaixonado louco, desses que fazem de Paris o que é .. Você aproxime-se sempre desta rapaziada da tertúlia. Alimente aqui o seu belo expressionismo. Honre-nos com a sua presença!... E frequente La Grande Chaumière ... Verá que não se arrepende. Não achas, Pierre?!...
- As lições de modelo vivo, então ...
_Cala-te, Pierre, esse atelier não é para depravados como tu. Aquilo é para pintores que sejam médicos ...
Pierre Robert sorriu. Isidro não sabia se deveria sorrir se não ... Acima de tudo, sentia-se dominado por uma intensa emoção. "Amigo de Vieira da Silva".
A entrada de Isidro Lobo na Academia acabou, assim, por se fazer com todas as honras: "mestre do expressionismo..."
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