Rocha Martins in D. Carlos - História do seu reinado
"El-Rei D. Luís andara preocupado naquêle domingo. Entrava, a miudo no quarto da esposa, Rainha de dezeseis anos, à qual a sumidade médica da Real Câmara, o doutor Magalhães Coutinho garantira que só no dia seguinte teria o seu bom sucesso.
Quando, pela uma hora e três quartos, da segunda feira - a 28 de setembro de 1863 - a Narcisa, porteira, colheu do real leito sardenta, uma creança rósea, robusta e forte, D. Maria Pia abrira um sorriso calmo nos lábios descórados.
De seguida, serenamente, com os seus cabelos fulvos espalhados nas almofadas, a face sardenta, esmaecida, quedara-se a ouvir os tiros de salva das fortalesas e dos navios que faziam estremecer os vidros do palácio.
Começara a acorrer gente do largo da Ajuda, vasto e triste, ladeado por casotas anãs e por sua torre esguia onde batiam horas melancólicas; desabelhara-se a visinhança da Boa-Hora e od Cruseiro e, dentro em pouco, as carruagens pejavam a extensão, diante das abobadas e das estátuas na estrada do Paço.
Bimbalhavam os sinos, estralejavam mil girandolas, aglomerava-se o povo e, pela recâmaras régias, juntavam-se damas e camaristas, generaes a altos magistrados, plíticos e diplomátas que remorejavam respeitos e curiosidades.
Já o patriarca, D. Manuel I, se dirigia para a capela, afim de dar o primeiro sacramento ao recem-nascido; sequitava-se a Côrte e os grandes do país, e o Rei, numa enorme ventura, chamava D. Gabriela de Sousa Coutinho, áia da Rainha, e nomeava-a dama da Ordem de Santa Isabel; ao veador, visconde da Lançada, dava-lhe a sua própria comenda da Conceição e egual conferia ao clínico sábio que assistira à Rainha.
(...) Seria, pois, Carlos e ninguém pensava nos maus fados que chancelam, atravez da História, os Principes, primeiros portadores dêsse nome nas suas dinastias."
Fialho d' Almeida in Os Gatos
"(...) Do meu casalejo trazia em folha uma admiração de saloio p'ra quanto visse, e por N. Senhora de Guadalupe vos juro que ninguém sentiu melhor vontade de crer na predestinação divina dos reis sobre o destino dos povos, e na omnisciência da vossa missão como Dador da prosperidade económica e social de que havemos mister.
Mau grado as calúnias espalhadas ao derredor do vosso nome; mau grado o afiançarem-me amigos vossos a exiguidade da vossa inteligência e a inverosimilhança da vossa pedanteria; mau grado o dizerem-me, senhor, que mentíeis com um descaramento inolvidável, e escarafuncháveis nas ventas com uma teimosia imperecível, todas estas asserções eu referi a estímulos de corte, a mal-entendidos d'antecâmara, a ciúmes d'áuliscos e a intervenções de republiqueiros. E repensando na estirpe olímpica do vosso nome, comigo mesmo dizia, ao sentir-me pela suspeita - Tendo este rapaz tão grandes vícios na ascendência, como é possível não ser ele um poço de virtudes?!
Adquiri numa loja um retrato vosso e, contemplando-vos, prosseguia o meu sonho de vos glorificar como a um enviado do Senhor."
Aquilino Ribeiro in Um Escritor Confessa-se
"... Disse-se que o acto censurável de D.Carlos ter de mergulhar a mão nos dinheiros do povo implicava, em contrapartida, um acto de generosidade sui generis: deixar à solta almoxarifes, administradores, criados, caseiros da Casa de Bragança, que era rica e opulenta. É verdade que todos esses gerifaltes dos bens bragantinos enriqueceram fabulosamente à custa da real barba-longa. Os filhos e netos são hoje prudhommes no burgo e altas personalidades no mundo da finança e da governação. Pois esses que ponham o retrato de S.M. na sala.
(...) D.Carlos não era tolo, conhecia-os de ginjeira. Mas prezava muito aquela quietude do espírito que desemboca na indulgência e desdém filosófico, uma forma de superioridade sorridente de grande latifundiário por esses sevandijas do campo e leirões do sequeiro. Ora os rendimentos da Casa de Bragança, bem administrada, cobriam de sobejo, para uma Corte pataqueira como era a portuguesa, sem fausto nem sumptuosidades, o deficit que poderia deixar a dotação oficial, mantendo-se a Monarquia em seu brilho consuetudinário e D. Carlos rei magnânimo e esbanjador.
D. Carlos ganhara realmente fama de mãos rotas, segundo a escala da pelintrice geral, rei de país pobre e de ladros uns para os outros, em que a função primeira, desde longe, desde os Lusitanos, foi roubarem-se o melhor que podiam. A história judicial da Nação tem no capítulo do latrocínio a crónica mais viva e opolenta. De modo que não admira que o tetraneto de D.João V procurasse resolver as dificuldades que lhe sobrevieram, pedindo aos alcofetas da governança que lhe fossem abonando as verbas que lhe eram necessárias sobre o que o Tesoiro lhe havia de dar de honorários. É clássico."
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