terça-feira, 29 de maio de 2012

Entrada livre *




















* Transcrevo-me (1980):

Já há uns anitos bem bons passei uma parte das férias em Lisboa. Foi oportunidade para rever museus e fazer um ensaio: assistir a uma conferência dessas que se diziam de entrada livre. Não me recordo do tema tratado, mas há pormenores que ainda hoje me fazem lembrar aquela meia hora que passei na biblioteca do Palácio Foz a tentar ouvir uns senhores falar com muito aplauso da selecta assistência. Selecta assistência, digo bem, já que eu era apenas espectador, e, como tal, vi mais do que ouvi. Fiquei de pé, logo à entrada, não só por deferência para com o reumático dos demais presentes, como porque não seria cómodo - nem humano - ficar sentado entre dois "amigos do elogio mútuo" que se quisessem mimosear um ao outro com o apoio dos da fila da traseira.

O que aconteceu, pois, foi ter de me encostar aos armários do fundo da sala, para aí, reduzido a mim próprio, tentar vir a absorver as palavras do conferencista que falava nesse dia de Verão de um ano, já não me lembro qual, a propósito de um tema literário de que a memória não me faz presente.

O que perdi - se é que perdi - do que foi dito, ganhei-o, todavia, pelo que vi e senti. Tratava-se, com efeito de conversa entre amigos, circunstanciais ou não, que, no fundo, para estarem juntos na cavaqueira do sim crónico, tinham conseguido aquela sala que sempre era maior - e com outro ambiente - do que a rotineira mesa de café. Por outro lado, neste entraria qualquer badameco e na sala já se sabia que a lotação era limitada e, quando muito, o que se iria dizer em voz alta não sairia dali - a não ser que o contínuo, que também já era conhecido, desse com a língua nos dentes.

Aliás, mesmo que a sala se não enchesse - o que seria impensável dado o conhecimento antecipado da dimensão do círculo dos "amigos do elogio mútuo" - o que era natural é que não aparecessem caras novas e, eventualmente, discordantes do bom tom de civilizado e vibrante aplauso ao orador da sessão e ao seu ilustre apresentador. Mas surgiu o inesperado para Suas Excelências: eu não tinha mais museus para ver e havia trocado o vaguear por Lisboa pela presença naquela conferência de entrada livre. E entrei. Sem quase passar da porta, mas entrei. Ante o olhar ansioso da mui douta e ilustre assistência cujas alvas carecas reluziam face ao meu olhar expectante e algo atrapalhado. No meio de tanta gente - e grada gente! - senti-me só.

Fez-se então silêncio. Levantou-se o apresentador, que, de improviso, ou melhor, de cor, enalteceu as virtudes do insigne conferencista a quem "tinha a subida honra de apresentar". Falou, falou, falou ... e falou. E recordo-me que foi vibrantemente aplaudido quando terminou a sua fala. Passei, então, por um momento de extrema aflição: eu que estava ali livremente, que queria ser verdadeiro, que julgava que nada, nem ninguém exercia sobre mim qualquer pressão, senti-me mal não aplaudindo como, pelo que vi, era de bom tom.

O que fora dito não me fizera vibrar. Deí os aplausos que julguei justificados. Paguei a minha "ousadia" com um fuzilamento de dezenas de olhares que, do apresentador à última fila, me foi atingindo até me fazer sentir infeliz e deslocado daquela "bela sociedade" em que desprevenidamente aparecera para combater o ócio de uma acalorada tarde estival.

Já não ouvi o insigne orador. A grande lição da conferência estava aprendida. Pus-me ao fresco, enquanto na biblioteca os aplausos continuavam e o contínuo de serviço aproveitava para, cá fora, fumar um cigarro.

Passaram-se, entretanto, os anos e, no Verão Quente do ano passado, achei que deveria ir a um plenário desses que se convocam para decidir coisas importantes e que nos tocam directamente. Não havia restrições à entrada para os interessados na matéria em causa e falava-se numa votação fundamental. Fui. E para o meio da sala. De pé, como os demais. Sem lugar previamente marcado. Solto. Livre. Disposto a participar. Era o primeiro plenário dirigido pela nova comissão que se dizia constituída por gente interessada no nosso bem. Ouvi com entusiasmo o primeiro inscrito. Ouvi o segundo. O terceiro. Tudo natural, tudo claro, tudo condizente com os interesses da maioria que cada um defendia à sua maneira, sem coacções, sem medo das palavras.

A certa altura, porém, inesperadamente, surgiu na mesa um requerimento de um fulano que estava rodeado de uma meia dúzia de companheiros. O presidente, como é das regras, procedeu desde logo à sua votação. Criou-se a expectativa. E quando eu me preparava para votar contra, senti no braço uma forte sacudidela. Vi-me impedido de dizer o não que a minha consciência impunha.

Como que por instinto, recuei no tempo. Ao espírito acudiu-me aquela tarde quente de Verão que me levara à "bela  sociedade do elogio mútuo", onde só os que aplaudiam cegamente não eram censurados pelos olhares inquisitoriais dos presentes.

Afinal, reprimir pelo olhar ou pelo safanão é sempre reprimir - sem se precisar de dizer que a entrada não é livre.

Livra!...

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