quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Fartura em 2ª mão




Importantíssimo: o apontamento que, transcrevendo, reanimo, foi escrito em 1978 (mil novecentos e setenta e oito!). E rezava assim:




"Há por ai à venda um livro que, a meu ver, vai ficar na história como uma das edições mais úteis que se fizeram até hoje em Portugal.

Chama-se ele "Aproveitamento de Sobras" e trata, naturalmente, da forma de cozinhar os excedentes das refeições de cada dia. Excedentes em bom estado, entenda-se. De qualquer modo, sobras - o que não deixa de ser, em princípio, um sintoma do franco optimismo que norteia o editor. O certo é que para existirem sobras tem que haver comida e para esta existir é sinal de que não há fome.

Estamos, pois, "felizes e contentes": Portugal tem sobras!

Contrariamente ao que se diz, há comidinha a mais na nossa casa. É por isso boato o que se ouve falar, relativo ao espectro da fome que já pairaria sobre nós. Não senhor: há paparoca para todos. E sobras. 

A leitura do livro impõe-se, embora não seja urgente, já que, pelos modos, ainda ninguém deixou de comer a sua refeiçãozinha.

Por muito estranho que pareça, contudo, o simples facto de ter lido aquele título tão optimista, deixou-me preocupado. Sem saber porquê. Ou melhor: assaltou-me a ideia estúpida com certeza, que as sobras de que o livro trata são as que o estrangeiro nos dá - depois de se ter regalado com a comidinha acabada de fazer a partir do produto directo do seu trabalho intenso e continuado. Para nós estaria reservado o papel de aproveitadores das sobras alheias. Comeríamos, assim, tudo em 2ª mão.

Será isto? Não será?

Pouco importa: se o livro é a demonstração indirecta da fartura, o editor é um bem disposto e a edição vender-se-á por isso; se, pelo contrário, se destina a explicar aos portugueses como se aproveitam as sobras alheias, então, além do mais, o livro é capaz de vir a ser um êxito nunca visto - se continuarmos, como tudo indica, a não produzir.

Não acredito que o "Aproveitamento de Sobras" se destine a ensinar a cozinhar a comida que estávamos habituados a dar aos cães e gatos." 

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