sábado, 16 de novembro de 2013
Do lido, o sublinhado (44) - O homem duplicado
"Foi durante a espera num sinal vermelho, enquanto Tertuliano Máximo Afonso acompanhava com toques ritmados dos dedos no aro do volante uma canção sem palavras, que o senso comum entrou no carro. Boas tardes, disse, Não te chamei cá, respondeu o condutor, Realmente não me lembro de que algum dia me tenhas pedido para vir, Até o faria se não conhecesse de antemão os teus discursos, Como hoje, Sim, vais dizer-me que pense bem, que não me meta nisto, que é um imprudência de todo o tamanho, que nada me garante que o diabo não esteja atrás da porta, a conversa de sempre, Pois desta vez enganas-te, o que vais fazer não é uma imprudência, é uma estupidez, Sim senhor, uma estupidez e das grossas, Não vejo em quê, É natural, uma das formas secundárias da cegueira de espírito é precisamente a estupidez, Explica-te, Não é necessário que me digas que te diriges à rua onde mora o teu Daniel Santa-Clara, é curioso, o gato tinha o rabo de fora e tu reparaste, Que gato, que rabo, deixa as adivinhas e vai direito ao assunto. É muito simples, foi do apelido Claro que se criou o pseudónimo Santa-Clara, Não é pseudónimo, é nome artístico, Já o outro não quis a vulgaridade plebeia do pseudónimo, chamou-lhe hetenónimo, E de que me serviria ter visto o rabo do gato, Reconheço que não muito, à mesma terias de procurar, mas indo aos Claros da lista telefónica, acabarias por acertar, Já tenho o que me interessa, E agora vais à rua onde ele mora, vais ver o prédio, olhar de baixo o andar em que vive, as janelas, que tipo de gente habita o bairro, que ambiente, que estilo, que modos, foram estas, se não me equívoco, as tuas palavras, Sim, Imagina agora que quando estiveres a olhar as janelas te aparece a uma delas a mulher do actor, enfim, falemos com respeito, a esposa desse António Claro, e te pergunta por que não sobes, ou então, pior ainda, aproveita para te pedir que vás à farmácia comprar uma caixa de aspirinas ou um xarope para a tosse, Disparate, Se te parece disparate, imagina agora que alguém passa e te cumprimenta, não como este Tertuliano Máximo Afonso que és, mas como o António Claro que nunca serás. Outro disparate."
Saramago, José
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