João Paulo Borges Coelho, o escritor moçambicano que chega para o Festival Literário de Macau – Rota das Letras, fala da sua obra, da literatura e do seu país.
Cláudia Aranda
O escritor, historiador e professor universitário João Paulo Borges Coelho, nascido em 1955, começou a escrever desde jovem, mas só publicou o seu primeiro manuscrito, “As Duas Sombras do Rio”, em 2003, por “obra do acaso”, quando se cruzou com o editor português Zeferino Coelho, da Editorial Caminho.
Desde então, o escritor publicou seis romances, duas novelas e dois volumes de contos. O romance “As Visitas do Doutor Valdez” venceu o Prémio Nacional de Literatura José Craveirinha, em 2004. Com o romance histórico “O Olho de Herzog” o escritor moçambicano venceu os prémios Leya 2009 e BCI 2010.
Em conversa telefónica mantida antes da partida para Macau, o autor revelou estar “curioso” em relação a esta sua segunda visita a Macau, 14 anos depois de uma primeira viagem à China.
O festival literário arranca quinta-feira, com uma cerimónia de inauguração, às 18h no Centro de Ciência de Macau.
- Quais as expectativas que tem em relação a esta participação no festival literário?
João Paulo Borges Coelho – Vou um pouco curioso em relação à língua, porque eu verifiquei na outra visita que fiz que o português era muito circunscrito. Não é que a língua seja o todo da literatura, mas é uma parte importante. Então, vou com uma certa curiosidade para ver como é que a língua portuguesa respira aí [em Macau], e com curiosidade de encontrar outros colegas de profissão, que, na maioria, me são desconhecidos, é uma experiência.
- Falando do seu trabalho, o João Paulo é primeiro professor universitário e depois escritor ou estas actividades cresceram de forma simultânea?
J.P.B.C – Tenho uma actividade de escrita literária antiga, mas só resolvi começar a publicar há relativamente pouco tempo, desde 2003. Portanto, digamos que a carreira académica é mais antiga. A actividade literária é recente, mas tem vindo a ganhar um espaço, é intensa. Hoje em dia digamos que estou em plena migração da academia para a literatura e com vontade de, durante um par de anos, experimentar a literatura a tempo inteiro.
- A guerra civil em Moçambique e o tempo do socialismo puro e duro são tópicos de alguns livros como “As Duas Sombras do Rio” e “Crónica da Rua 513.2”.
J.P.B.C – E o “Campo de Trânsito”. Esses dois [junto com “Crónica da Rua 513.2”] são do tempo do socialismo puro e duro como diz, dos anos 1980.
- Se esses livros tivessem sido publicados nessa época, nos anos 1980, teriam sido censurados?
J.P.B.C – Não, quer dizer, naquela altura talvez tivessem tido um outro formato. Não se pode dizer que tenha havido uma censura directa das coisas. As sociedades africanas são demasiado baseadas na improvisação para isso acontecer. Só num caso de ditadura é que há limitações desse tipo. Havia mais uma espécie de auto-censura, mais até do que censura, isso pela indefinição de até onde se podia ir. Mas, não conheço casos de problemas com autores por aquilo que tivessem escrito, não conheço casos gritantes. É natural é que o espírito que está atrás da escrita tivesse sido mais moderado nessa altura. Agora pode escrever-se basicamente aquilo que se quer.
- Hoje há liberdade de expressão e de pensamento? As pessoas já não sentem ou praticam auto-censura?
J.P.B.C – Sentem, também. O que nós vivemos neste momento, e de facto já há alguns anos, desde 1992, é formalmente numa democracia multipartidária, mas regida por um partido que tem grandes dificuldades em reinventar-se como um partido entre outros. Portanto é um partido que luta em seguir essa posição hegemónica que tem. Então, nesse sentido, vivemos numa situação relativamente ambígua, de transição, em que há, de facto, grande liberdade de expressão, mas há também uma associação do progresso material à ligação a esse partido. Então, as pessoas têm um certo cuidado, sobretudo, se dependem desse partido para progredir. Nesse sentido, há um certo controlo. Mas, do ponto de vista das ideias há jornais que dizem coisas inconcebíveis acerca do poder, e as pessoas não vão presas por causa disso.
- Voltando aos seus livros, àqueles em que a guerra civil é pano de fundo, existe neles alguma crítica em relação ao que se estava a passar?
J.P.B.C – Nas guerras não há partes inocentes. Uma guerra é um falhanço de uma sociedade inteira. A guerra civil tem elementos de fora, mas tem também elementos de falhanço das políticas internas. Nesse sentido é crítico, embora eu não veja que o papel da literatura seja directamente a crítica política. Para isso, penso que é mais útil escrever textos acerca disso, nesse sentido o texto académico é mais contundente. Vejo a literatura como uma reinvenção de espaços alternativos para que a nossa vida não seja toda submetida aos ditames da política. Nós temos o dever de reinventar espaços alternativos, de imaginação, de crescimento dos outros, e portanto é natural que se façam juízos de valor e críticas sobre essas questões que são questões nossas, tão importantes, mas não é esse o objectivo. Ou seja, não concebo a literatura como forma de dizer coisas que não se podem dizer de outra forma. Eu prefiro usar a outra forma directa e criticar sem usar um artifício literário.
- O facto de ser historiador e investigador influencia as histórias que conta nos livros?
J.P.B.C. – Há sempre uma interferência por mais distância que se queira criar. Há uma certa escala de olhares na literatura que é informada pela história. Tenho “O Olho de Herzog”, que é mais histórico, no sentido clássico, é um romance de época. Este último [“Rainhas da Noite”], também, é situado nos anos 1950, embora tenha um intercâmbio com a actualidade. Portanto há sempre uma influência do olhar do historiador contra a qual desisti de lutar. Neste momento até me agrada trabalhar nessa fronteira que é uma fronteira um pouco ambígua, porque a história é para descobrir a verdade e a literatura não.
- O panorama literário moçambicano actual aparenta ser rico.
J.P.B.C. – É rico mas é frágil, falta massa crítica, está numa crise de crescimento, falta gente que publique. É rico tendo em conta que se vai produzindo, mas a actividade editorial é muito escassa, fraca. Se bem que, nestes dois últimos anos, esteja de alguma maneira a reabilitar-se. Existem duas ou três editoras dignas desse nome, têm uma actividade reduzida, mas começam a surgir alguns títulos no mercado, o que é bom sinal. Vamos ver se conseguem resistir, porque passa muito, também, por estratégias governamentais, políticas de difusão do livro, intervenção nas escolas. É preciso que haja mais leitores para a literatura poder crescer e os livros são poucos e muito caros.
- Ainda assim, o interesse pela leitura cresceu ou nem por isso?
J.P.B.C. – Sempre foi um mercado muito circunscrito, não me parece que seja uma prioridade do Governo. O desenvolvimento é visto de uma outra maneira, é visto mais como um desenvolvimento material. O livro pertence a uma elite urbana e, em grande medida, a uma elite estrangeira que frequenta as livrarias. O estudante vai às bibliotecas, compra um livro ou outro. O que se nota que muda é a juventude, urbana, universitária, do ensino secundário. Aí nota-se um interesse, mas do interesse à aquisição de livros vai ainda uma distância.
- O João Paulo só publicou o primeiro livro em 2003, porque é que atrasou esse processo de publicação?
J.P.B.C. – Nos anos 1980 não era visto como prioritário nem eu saberia como colocar a minha voz, porque a maneira como a sociedade olhava o mundo era muito coesa e muito colectiva e a literatura expressa uma voz ferozmente individual – pelo menos, é assim que eu a concebo. Eu tinha que publicar com a minha voz, mas levou-me tempo a perceber isso. Aconteceu porque estive numa zona remota do norte de Moçambique [Zumbo] a fazer trabalho académico e fui verificando histórias extraordinárias à minha volta, e ia tomando apontamentos. E as histórias encadeavam-se umas nas outras. Às tantas eu já desencadeava histórias sem ter respeito pela realidade. Então resolvi pegar nesse texto. Cruzei-me com o editor Zeferino Coelho [responsável pela Editorial Caminho] e ele publicou-o. Foi quase por acidente, foi obra do acaso, de alguma maneira.
- “As Duas Sombras do Rio” é um retrato dessa realidade no Zumbo?
J.P.B.C. – Digamos que todos os meus textos de ficção partem sempre da realidade, de uma maneira ou de outra. Não se trata de fugir dela, mas trata-se de falar dela numa outra dimensão. Mas, o ponto de partida, digamos a faísca que acende, é sempre a realidade. Penso que é sempre assim, não há maneira de fugir da realidade.
- A realidade é melhor do que a ficção?
J.P.B.C. – São duas coisas diferentes. A realidade sem a ficção também é muito chata. A ficção é um fingimento da realidade em que o escritor e os leitores fingem que são superpoderosos, são uma espécie de imitações de Deus, que podem fazer o que bem entenderem. Nesse sentido a ficção abre dimensões, que nos permitem fugirmos, nomeadamente, à chatice que é o mundo actual.
- Porque é que diz que o mundo actual é chato?
J.P.B.C – Por mil e uma razões, porque há uma grande desigualdade, há fome, sofrimento. Veja a Síria, veja agora a Ucrânia, veja a África em geral. O mundo avança tecnologicamente, mas se houvesse uma máquina que medisse os índices de sofrimento [veríamos que] esses não diminuem. Pelo contrário, dá a impressão que crescem, ou pelo menos que falamos mais neles – o que, de certa forma, é positivo. Não melhorámos assim tanto. Cada vez mais os poderosos têm mais poder, portanto, não há uma evolução no sentido do aumento de justiça social. Há muito sofrimento e eu venho de um continente onde isso persiste, onde demora a passar, e o que se faz em nome do progresso não tem um grande impacto a esse nível, daí o meu cepticismo.
- Falando do festival, a presença da escritora Paulina Chiziane na edição passada da Rota das Letras teve eco na imprensa moçambicana?
J.P.B.C. – Não, de todo. Penso que para fazer essas pontes, Macau é um lugar longínquo e vice-versa. Para fazer essas pontes é preciso mais, é preciso troca de livros, é preciso persistência a atravessar o mar. É a repetição e o alargamento que vai ter algum impacto.
- O trabalho dos escritores moçambicanos não se reflecte na imprensa?
J.P.B.C. – Muito pouco. Há aquilo que se chama a hegemonia do político, os jornais falam das guerras e das actividades dos políticos, isso toma conta de tudo. O espaço da cultura é um combate que se tem de fazer todos os dias para poder crescer, e isso é muito difícil.
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