“Se não desenhar durante um ou dois dias começo a ficar muito chato”by Ponto Final |
Quando as palavras são inúteis para comunicar porque à sua volta se fala uma língua diferente, Luís Simões desenha nos seus próprios braços. Faz um globo, uma mochila e um caderno com desenhos: é ele.
Já está há tanto tempo a viajar que já nem sabe por quantos países passou. São mais de 25, isso é certo. Luís Simões, 34 anos, saiu de Lisboa há mais de dois anos e vai ficar fora mais três. Desenhou moinhos holandeses, yurts na Mongólia, pontes na Bósnia e templos chineses, mas também os jogadores de slot-machines na Finlândia e os retratos de outros urban sketchers com quem se cruzou. Eles, tal como este português, desenham os locais e as situações por que passam, no local. Neste momento, Luís está em Hong Kong onde arranjou um emprego em regime freelance. Foi o efeito South China Morning Post. O diário fez um artigo sobre o seu projecto, o World Sketching Tour, e depois de os seus desenhos aparecerem no jornal recebeu o convite para fazer ilustrações. Aceitou-o porque assim pode amealhar dinheiro para pagar os três anos que lhe faltam para terminar a viagem. O plano é fazer um ano por continente. Faltam três e ainda a Antártida, que também quer desenhar.
De Macau onde Luís esteve na semana passada, guardou tudo o que lhe faz lembrar Portugal e por isso quer voltar aqui para reler com gosto os nomes das ruas em português e conhecer a cidade. Não voltou a Lisboa desde que começou a viajar. E não vai regressar nos próximos três anos. A ideia é esta: desenhar o mundo.
- Nas viagens foi sempre por terra ou já andou de avião?
L. S. – Em dois anos fiz apenas três viagens de avião. Evito ao máximo. O avião é uma incubadora e estamos ali num processo de coma e depois acordamos num sítio qualquer e detesto isso.
- Qual foi o transporte mais estranho onde andou?
L. S. – Andar à boleia na China numa carrinha de caixa aberta com vacas. Tinha gado atrás de mim e cada vez que a carrinha andava as vacas também andavam de um lado para o outro e a minha mochila estava no meio delas. Também apanhei boleia com malta que estava a transportar entulho. Andei no meio dos pregos, dos troncos e aquilo fazia um grande cagaçal e alta fumarada, mas estava super feliz porque ao menos não pagava. íamos ali os três e eles nem sabiam falar inglês, nem eu chinês, mas foi muito giro. A China foi o país onde até agora mais coisas fora do comum aconteceram.
- Como se ultrapassa a barreira na língua no interior da China? Saber desenhar ajuda?
L. S. – À partida temos de saber que eles não nos vão perceber, por isso é preciso criar estratégias. Na altura procurava sempre raparigas novas porque normalmente têm mais educação e conseguem falar um bocadinho de inglês. Quando não é possível faz-se gestos, lê-se nos olhos ou faz-se desenhos. Também escrevia muito nos meus braços porque era mais prático. Desenhava o globo e depois uma pessoa com mochila e um caderno com desenhos e aquilo dava para explicar aos poucos o que andava a fazer.
- Quando as pessoas o vêem desenhar aproximam-se?
L. S. - Muito. Quando eu estava aí em Macau houve uma rapariga chinesa que veio ter comigo quando estava a desenhar e perguntou-me: “Posso dar-te um beijinho?”. E eu fiquei assim: “O quê?”. Depois percebi que ela fazia anos e queria fazer algo assim muito diferente naquele dia e tirou uma fotografia a dar-me um beijinho. Há malta que me aborda e pergunta o que estou a fazer, que me oferece comida ou sítio para dormir.
- Li que uma senhora na Rússia o convidou para jantar em casa dela. Pode contar essa história?
L. S. - Estava a desenhar numa rua muito suja e antiga que tinha um carro soviético antigo. Para além de mim e das moscas apareceu ali aquela velhinha a perguntar o que eu estava a fazer e a sugerir que eu desenhasse as igrejas, que achava mais bonitas. Eu respondi que era exactamente o contrário porque aquilo tinha história para mim. Então ela disse-me que quando terminasse de desenhar entrasse numa porta [e apontou]. E ficou assim um bocado o mistério no ar. Quando acabei o desenho e entro na casa dela está ela a fazer-me uma sopa de Verão fria, muito boa, que é um guisado com carne e arroz. Ela convidou-me para a sala e estivemos lá a descascar fruta e a conversar. No fim ela lembrou-se e foi buscar um cartão que tinha feito há muitos anos. Era um poster todo desenhado de quando ela era mais nova. Tinha uma série de elementos da vila ou da aldeia onde ela viveu. Só que havia um elemento que ela nunca tinha conseguido desenhar que era uma estatueta que tinha em casa. E então disse-me: “Aqui neste espaço podias-me desenhar isto”. Eh pá, aquilo tocou-me imenso. Quando estava a desenhar aquilo a senhora emocionou-se muito. Começou a chorar. Agarrou-se a mim e disse-me: “Agora já tenho isto feito finalmente”. E eu comecei a emocionar-me. E acabámos por estar ali os dois tipo bebés chorões. Ela sentiu que finalmente ficava fechado o círculo de todas as coisas que ela precisava de ali ter [no poster].
- Quando vais a um sítio escolhes desenhá-lo por alguma razão, mas quando tens uma experiência como essa tens a necessidade de fazer um desenho depois?
L. S. – Cada vez mais sinto isso. Porque a memória é uma coisa muito falsa e não se pode estar agarrado a ela. Ou se tira uma foto ou se faz um desenho senão aquilo apaga-se com o tempo. Nos meus últimos três cadernos tenho desenhado episódios que me acontecem porque às vezes é tão forte que se não os desenho ou tiro de dentro de mim aquilo fica ali muito acesso.
- Tem havido alterações no que escolhe desenhar ou os motivos têm tido alguma consistência? Imagino que não pense nisso...
L. S. - Por acaso até penso. Quando olho para os meus desenhos anteriores vejo o caminho que tenho feito e tenho de pensar no que quero fazer para a frente. Porque no fundo tenho sempre vontade de evoluir e como escolho os argumentos também influencia a maneira como desenho e pinto. Há sempre coisas fundamentais. Se vejo algum monumento é importante porque aquilo marca exactamente o sítio onde estou. A maneira como tenho abordado o desenho é que varia bastante. Umas vezes meto mais cores, outras menos. O que agora tenho feito muito mais é não querer desenhar tudo. É impossível. Portanto sou capaz de me privar do mundo e pôr-me no meu mundo durante três quatro horas a desenhar uma situação e depois usufruo muito mais o lado de viajante. Antes se calhar estava muito concentrado em querer desenhar tudo e tentar absorver tudo.
- Desenha todos os dias? Precisa de ter uma certa rotina?
L. S. – Se não desenhar durante um ou dois dias começo a ficar muito chato. Começo a chatear-me comigo e a embirrar. O desenho é como uma necessidade. Faz-me muito feliz. Sei que me esqueço muito da realidade quando estou a desenhar e isso é fundamental para mim. Acaba por ser o meu equilíbrio. Às vezes estou mesmo muito cansado e vejo uma situação qualquer ou uma zona que me dá logo vontade de desenhar e esqueço-me que estou cansado.
- Esteve em Macau na semana passada. Foi a primeira vez?
L. S. – Sim, mas senti que tenho de voltar. Gostava de ficar pelo menos quatro dias, mas durante a semana porque tem menos gente. No fim-de-semana disseram-me que isso fica um caos. Quando cheguei aí tive uma nostalgia tão grande. As lojas tinham todas os nomes em português e cheirava a Portugal de certa forma. A minha ideia é passar aí mais tempo porque tenho muitas saudades de coisas como Cerelac e coisas que já não me passam pela boca há imenso tempo. Não sou saudosista, mas se é diferente tento logo apanhar. Quando estava num supermercado em Xangai encontrei atum Ramirez, Compal e muitas coisas. A minha amiga que estava comigo viu-me quase a chorar a olhar para aquilo como se fosse um puto. Depois não consegui comer o atum. “Tive tanto tempo sem o ver e agora não consigo comer”. Pus no fundo da mochila e agora ando sempre com ele.
- Quando disse aos seus pais que ia para fora cinco anos o que disseram eles?
L. S. – O meu pai disse que era estúpido e a minha mãe começou a chorar. São as primeiras reacções que tenho na memória. Depois tentaram demover-me. Ficámos assim muito tempo sem falar até eles digerirem. Depois perceberam mesmo que estava a falar a sério e passados uns meses o meu pai disse-me: “Estive a falar com a tua mãe. Estamos os dois reformados. Temos os dois 64 anos e perguntei se a tua mãe queria ir dar uma viagem assim grande e ela disse que sim. O que achas se comprássemos uma auto-caravana e fossemos uma parte contigo?”.
- Como é que reagiu?
L. S. - Mal. Disse-lhes que achava que estavam desesperados em querer proteger-me, que não fazia sentido. Mas depois falei com uma amiga que me fez ver que eles também estavam a arriscar tudo e que para mim também podia ser bom tê-los por perto. Disse-lhes que sim com muitas reticências e aos poucos fomos começando a programar o projecto a três. Eles não sabiam o que era um mochileiro e como desfrutar da viagem devagar. Eram muito turistas. Iam aos sítios, tiravam fotografias e tinham medo de arriscar na alimentação, no inglês. Andámos aí uns três, quatro meses assim. Eles a afrouxarem o registo de turista e eu a acelerar o modo de mochileiro que é sempre a andar mais devagar e nunca saber o dia de amanhã. Uma das melhores experiências desta viagem foi redescobrir os meus pais e perceber como é ser pai e também como um filho deve falar para o pai. Quando se partilha a vida num pequeno habitáculo no tamanho de um quarto não há nada a esconder. Não há pai e filho. Tem de haver muita camaradagem, muita simplicidade. Isso acabou por ser uma das melhores memórias que tenho com os meus pais.
- Quais são os próximos destinos?
L. S. - A minha ideia é ficar aqui mais três meses em Hong Kong a aproveitar que estou a fazer dinheiro para os próximos anos. Esta oportunidade foi uma dádiva de Deus porque andava meio cansado ao final de dois anos. Cheguei ao Japão e pensei que se arranjasse trabalho ali seria lindíssimo. Adoro a cultura japonesa e artisticamente eles são muito bons, muito mais do que esta zona aqui. Depois vou para o Sudoeste da China, Nepal, Índia – quero passar assim uma grande temporada, seis meses – e depois passar para o sudeste da Ásia. Birmânia, Laos, Cambodja. E vai ser muito bom. Estou danadinho por ir lá.
- Vai ficar os cinco anos sem ir a Portugal?
L. S. - Esse é o meu grande objectivo. Não gosto de voltar atrás. Gosto de ir com uma direcção. Quero mesmo sentir o que é estar cinco anos fora de casa e ver a evolução de Portugal. A minha ideia é voltar a Portugal e percorrer do sul ao norte do país a desenhar e aí fechar o capítulo. Depois de conhecer o mundo vou conhecer Portugal e as ilhas.
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