sexta-feira, 11 de abril de 2014

O 25/4 e Umberto Eco (*)

Umberto Eco: "Escrevo uma coluna na qual digo, desde a primeira vez em que a assinei, que uma coisa - seja qual for -é actual desde que eu tenha pensado nela nesse dia."

"Na véspera das comemorações do 25 de Abril, tenho ganas de aproveitar para, "postas em sossego" as coisas boas - e foram várias - que a revolução nos trouxe, sublinhar, sem masoquismos e com o fim de dar um contributo, modestíssimo embora, para um certo esclarecimento da juventude, o que foram alguns pequenos-grandes dramas vividos no período que se seguiu à data festejada de cravos na mão. Aliás, é conhecida a "tendência" histórica para as repetições ... É necessário estar alerta. Anotem-se, por isso, meia dúzia de apontamentos, quiçá, enjoativos para os mais velhos (...).

Destruição da hierarquia: tivemos enfermeiros a quererem fazer-se de médicos e continuos a sentarem-se nas cadeiras de empresários experientes. Entre generais e soldados rasos a diferença também ameaçou ser pouca. Alunos ignoraram professores e, nalguns casos, estes quase chegaram a duvidar dos seus conhecimentos, por mais seguros que fossem.

A traição no quotidiano: viveram-se tempos de autêntica libertinagem e da mais descarada traição. Velhos companheiros sentiram abaladas amizades que supunham sólidas. Filhos rebeliaram-se contra pais e vice-versa.Famílias inteiras houve onde a cordialidade foi banida, como coisa ultrajada (...)."


Já passou. Já foi. Mas foi. E a volta deu-se. Apesar de tudo, sem derramamento de sangue. Salazar, a quem chamavam "o botas", agira, no mínimo, como um rural em S.Bento, rodeado de pides, de censores, de gosmas, e imaginando um Portugal à sua própria imagem e semelhança de homem pouco respeitador, de facto, das liberdades e direitos dos seus concidadãos. E aqui estamos nós, ultrapassadas as tormentas, documentos assinados na Europa que se deseja garante de paz e bem-estar (...)"


* Abril de 1988

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