sexta-feira, 4 de abril de 2014

Recortes do dito e do feito (44) - A velha e o gato

















Farturas, irónico nome de gato, mais habituado a espinhas do que a peixe, sem serradura, nem colchão de espuma que lhe valha, foi-se-lhe a enterrar, na aldeia recôndita, a dona, que não conheceu outra - mulher-povo, alma escanhoada, barba nas rugas, caldo e côdeas no estômago, oceano jamais visto, adro da igreja como princípio e fim, mãe de nada, amante de bichos.

A ele, animal doméstico, apesar de tudo, expressão viva da liberdade comemorada, finada a companhia, restam-lhe agora as ondas cor de barro dos telhados, as vielas sem lua, a prostituição dos afagos dispersos.

À sua velha amiga fez o que pôde: em vida, rabo eriçado, contra restos de comida escassa, água limpa ou correr de pêlo; no velório, ante a admiração geral, olhar triste, em noite longa; no cemitério, entre ciprestes, consumado o enterro, o resolver da pirâmide de terra ajeitada pelos da Câmara, momentos antes. Em casa ocasião, a eloquência da livre fidelidade, simples no discurso, mais simples e despojada ainda do que um feriado político sem Assembleia.

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