segunda-feira, 5 de maio de 2014

Vasco Callixto, que tem muito que contar (III)

Vasco Callixto tem muito que contar, claro. Mas, por isso mesmo, tem "material" de sobra, digo eu, a provocar a imaginação: episódios dramáticos, cómicos, trágico-cómicos, situações surpreendentes enquanto viajante. Falta romancear, pegar numa ponta e contar uma história ou mais. Sobrarão personagens, sobrará o insólito, sobrarão as palavras que ouviu.

Caro Vasco, alinhe os diálogos de que se recorde, situações de embaraço ou alegria, lembre gente diversa de quem chega.

A cultura dos outros, Portugal personificado, as surpresas, as exclamações de quem recebe. E, no meio de tudo, porque não, o feito maior: o primeiro carro de matrícula portuguesa a chegar ao Cabo Norte em Junho/Julho de 1974. 

E mais e mais. As alegrias, as exclamações personificadas (com nomes inventados, claro), mas com espanto no olhar e nas conversas. O relato das emoções, os diálogos. As atmosferas encontradas. As anedotas. As lágrimas. Os abraços. Tem que nos dizer tudo, caro Callixto! O que tive oportunidade de ver na sua "casa-museu" empurra-me também para o atrevimento da sugestão.

Entretanto ...

VIAGEM ÀS TERRAS DO SOL DA MEIA - NOITE(1.ª Ligação automóvel Lisboa - Cabo Norte - Lisboa)

4 Portugueses no Cabo Norte ...
há 40 anos
Situado numa das mais remotas áreas da Europa, debruçado sobre o Oceano Glacial Árctico e a pouco mais de 2.000 Km do Polo Norte, o Cabo Norte é hoje um destino 'mítico' para milhares de turistas, em demanda de lugares exóticos. Há 40 anos, contudo, atingir o Cabo Norte por estrada era ainda uma aventura. O alcatrão pouco ultrapassava a capital da Noruega.
Acompanhado da mesma 'equipa' com que já nos anos anteriores tinha percorrido mais de 15.000 Km pelas estradas da Europa (sua mulher, Maria Luísa Leitão Callixto, e seus dois filhos, António Carlos e José Carlos, então com 16 e 10 anos, respectivamente), 
Vasco Callixto totalizou cerca de 13.500 Km nesta sua épica "Viagem às Terras do Sol da Meia-Noite", atingindo o Cabo Norte no dia 1 de Julho de 1964, depois de mais de 2.000 Km de estradas que eram então e ainda de macadame, e com o carro transportado por guindastes nalgumas das inúmeras ligações marítimas necessárias para atravessar os fiordes noruegueses.
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Lisboa - Cabo Norte - Lisboa foi uma viagem admirável, através de estradas de todos os tipos, desde as excelentes auto-estradas da Alemanha, onde se roda a altas velocidades durante horas seguidas, até às pedregosoas e difíceis estradas da Noruega.
Viagem grande, como nunca até então tínhamos efectuado, a longa jornada a caminho do ponto mais setentrional da Europa, partindo da sua região mais ocidental, teve logo no início a maior etapa de sempre. E não foi sem certa emoção que às 18 horas do dia 12 de Junho de 1964, uma sexta-feira, o «Kadett» CL-74-03 «arrancou» do largo da Biblioteca em Lisboa, rumo a tão distantes paragens.
4 dias depois estávamos em Paris; íamos voltar à sempre atraente «Cidade-Luz». Paris é sempre Paris! E depois de uma romagem aos campos de batalha de Verdun e de uma visita ao Luxemburgo, o maior dos pequenos estados da Europa, onde curiosamente mais de 20 anos depois um dos intervenientes nesta épica viagem viria a residir e a exercer as suas funções profissionais, foi a vez de atravessar a Alemanha e a Dinamarca. O 10º dia de viagem teve aliás a curiosa particularidade de ser vivido em três países. Na verdade, tomámos o pequeno almoço na Alemanha, almoçámos na Dinamarca e jantámos em águas territoriais da Suécia, onde desembarcámos ao começo da noite. Na ligação Frederikshavn - Göteborg (Gotemburgo), um automóvel utilitário pagava naquela altura 29 corôas suecas, o que equivalia a cerca de 160$00; os almoços e jantares a bordo eram servidos, respectivamente, a 6 e 9 corôas (35$00 e 50$00). Que saudades ...
Desenho em corte do «Princesa Margarida», a maior das duas unidades que na altura estabeleciam a ligação entre as duas cidades do estreito de Kattegat
Gotemburgo foi o nosso porto de entrada na Escandinávia. Em 1964 ainda se conduzia pela esquerda, na Suécia. E em Gotemburgo encontrámos dois carros de matrícula italiana, ostentando dísticos com a indicação «Roma - Capo Norte - Roma» ! Soubemos então que os italianos estavam de regresso a Itália e não tinham alcançado o Cabo Norte, por terem encontrado, segundo nos disseram, muito más estradas, perigosas e cheias de lama, o que os levou a desistir antes do Círculo Polar! A perspectiva não foi portanto muito encorajadora ...! Mas a nossa viagem prosseguiu, claro.
2) Na Rota do Árctico
Pouco mais de 300 Km separam Gotemburgo de Oslo. E uma vez visitada a capital da Noruega ... começava a "corrida" para o Norte, por sinal nos primeiros dias bastante "perseguidos" pela chuva ... a lembrar-nos os italianos que tínhamos encontrado em Gotemburgo.
A estrada nacional n.º 50, com mais de 2000 quilómetros de extensão, apresentava-se deficientemente alcatroada logo nos seus primeiros troços, mas começava também desde logo a desbobinar-nos extraordinárias e fascinantes paisagens, revelando-nos uma Europa diferente, plena de ineditismo, a começar pela eternização do dia e o completo desaparecimento da noite. Espectáculo desnorteante e belo, a consecutiva permanência do astro-rei, iluminando tudo e todos durante sucessivas 24 horas, embriaga e extasia.
A primeira etapa na rota do Árctico terminou em Dombås, no então «Dombås Turist Hotel», um edifício, como outros ali, totalmente construído em madeira. E, a partir de Dombås, o deficiente piso alcatroado dava lugar a um lamacento macadame, aparecendo o alcatrão apenas nas proximidades das povoações mais importantes. A paisagem, essa torna-se ainda mais atraente e sugestiva, acentuadamente montanhosa.
A 25 de Junho estávamos em Trondheim, terceira cidade do país, fundada há quase mil anos, e que foi até ao século XIII a mais importante residência real. Na região de Trondheim (o Trondelag) os fiordes são profundos, o arquipélago costeiro tem milhares de ilhas, há vastas planuras, densas florestas e majestosas montanhas.
Atravessámos o Círculo Polar Árctico ao 15.º dia de viagem, 26 de Junho de 1964. Quando se alcança a "fronteira" da Zona Frígida do Norte sentimo-nos às portas desse estranho mundo árctico que caracteriza as terras nórdicas, onde tudo é diferente e onde o belo se alia ao admirável. Quando chegámos ao Círculo Polar por sinal o temporal estava no auge; a temperatura era de 8 graus positivos, o vento era insuportável e a chuva caía em fortes e abundantes bátegas. De Lisboa até ali tínhamos percorrido 5.564 Km ... mas para atingir o Cabo Norte faltavam ainda mais de mil !
Os fiordes fazem parte da paisagem árctica, mas é depois de atravessar o Círculo Polar que os mais pronunciados fiordes aparecem. A principal característica da rede rodoviária das regiões árcticas, particularmente há 40 anos, era portanto a existência de grande número de ferry-boats que satisfatoriamente a complementavam. A norte de Storfjord, 290 Km implicaram o melhor de quatro travessias marítimas !
Narvik, 238 Km a norte do Círculo Polar Árctico, tinha já nos anos sessenta uma fisionomia moderna, assentando a sua prosperidade no ferro dos ricos jazigos da Lapónia sueca, escoado através do seu porto para todo o mundo. Bombardeada e destruída na 2.ª guerra mundial, a cidade rejuvenesceu depois do termo do conflito. O teleférico de Narvik, construído 7 anos antes (o primeiro da Escandinávia) levou-nos ao cume do monte Fagernesfjell e às inigualáveis panorâmicas que dali se admiram. Ao longe avistam-se as ilhas Lofoten.
Para norte de Narvik entrávamos verdadeiramente na Lapónia. Os lapões, com os seus trajes característicos e garridos, e os seus inseparáveis rebanhos de renas, passaram a fazer parte do "quotidiano" da nossa "corrida" para o Norte. Continuando a habitar as suas típicas tendas em forma de cone, aberto na parte superior, os lapões quedavam-se pachorrentos, como que alheios a quanto os rodeava e a quanto vai pelo mundo.
A partir de Alta internámo-nos nas montanhas, cobertas de neve, que cobria quase tudo em redor, mesmo até à estrada. As paisagísticas continuavam sempre a revelar-se admiráveis de fascínio e de estranha e enigmática beleza. Num acampamento lapão, o porta-bagagem do «Kadett» passou a estar ornamentado, por cima das malas, por umas hastes de rena, esse característico distintivo de tão distantes paragens.
E em Skaidi deixámos provisoriamente a estrada nacional n.º 50 para irmos ao encontro daquela que continua ainda hoje a ser a cidade mais setentrional do Mundo: Hammerfest. Capital da Finnmark, a cerca de 2000 Km de Oslo, Hammerfest situa-se na ilha de Kvalöy, apertada entre uma alta montanha e um mar semeado de outras parcelas das fascinantes terras árcticas. A esta latitude, o dia tem já 24 horas e a noite está completamente ausente entre 17 de Maio e 29 de Julho de cada ano. Em contrapartida, de 21 de Novembro a 21 de Janeiro a cidade mais setentrional do Mundo não vê a luz do dia; é sempre noite durante aqueles dois longos meses.
3) No «Fim» da Europa! Chegada ao Cabo Norte!
Quando alcançámos o Cabo Norte, ao 20.º dia de viagem, com 6710 Km percorridos desde Lisboa, experimentámos três extraordinárias sensações: tínhamos terminado a primeira parte desta longa jornada pelas estradas da Europa, atingindo com pleno êxito o nosso objectivo; encontrávamo-nos no ponto mais setentrional do continente europeu, onde a terra acaba e o gélido oceano árctico começa; estávamos a viver, em toda a sua plenitude, o maravilhoso e fascinante espectáculo do Sol da meia-noite. A estas circunstâncias, ter-se-á de aliar o facto de termos levado a esse "fim" da Europa o primeiro automóvel de matrícula portuguesa. A Europa termina ali, a 71 graus de latitude Norte. Estamos, portanto, apenas a dois milhares de quilómetros do Polo Norte e à mesma latitude do norte do Alaska, das regiões setentrionais da Sibéria e das zonas centrais da Groenlândia. O ponto simetricamente oposto, 71 graus de latitude Sul, situa-se já na inóspita Antárctida. Todas estas realidades prendem o viajante àquele ponto extremo do continente, onde raramente se irá duas vezes na vida.
Russenes, um modesto povoado de meia-dúzia de casas, era há 40 anos o porto de embarque para Honningsvåg, na ilha de Magerøya, onde se situa o Cabo Norte. Actualmente, a ilha está ligada a terra firme através de um túnel de quase  7 Km, construído 212 metros abaixo do nível do mar. Para a "equipa" do Kadett de há 40 anos, contudo, a viagem marítima prolongou-se por cerca de 4 horas, navegando-se contudo a maior parte do percurso com terra à vista de ambos os lados. O Kadett foi para bordo do «Ingöy» com o auxílio de um guindaste, não podendo o barco levar mais do que 3 ou 4 veículos !
Quando desembarcámos em Honningsvåg eram 21 horas, mas não interessava que fosse tarde, pois o dia era eterno e o Sol brilharia durante toda a "noite". De Honningsvåg ao Cabo Norte distam pouco mais de 30 Km, numa estrada estreita e de pedregoso macadame que havia sido construída 6 anos antes. E assim, às 23:30h do dia 1 de Julho de 1964, com 6710 Km percorridos desde Lisboa, estávamos no «fim» da Europa, levando pela primeira vez um automóvel de matrícula portuguesa a tão distantes paragens. O vento soprava forte, e apesar do Sol, o frio era de respeito.
O ponto mais setentrional do continente europeu é um majestoso promontório, apontado às gélidas e negras águas do oceano árctico. Em 1964, um pequeno restaurante mandado construir pelo proprietário do único hotel de Honningsvåg constituía o único abrigo para os visitantes. Um altivo poste metálico, encimado por um «N» que indica a direcção do Polo Norte, um monumento que evoca a visita ao local do rei Oscar II, e um busto do rei Luís Filipe de França, eram então as únicas silhuetas naquele planalto situado 307 metros acima do nível do mar.
Deixámos o Cabo Norte quase às 2 horas da madrugada, de volta a Honningsvåg; a viagem de regresso estava iniciada. Era madrugada, mas mais parecia que eram 2 da tarde, pois a claridade era completa. Pelo caminho, só a quietude das renas, dormindo sobre a vegetação rasteira ... nos dizia que eram horas de dormirmos também.
Às 3 da tarde do dia seguinte, no barco «Tanahorn», deixámos Honningsvåg e a ilha Magerøya, de regresso a Russenes. Aquilo que um ano, ou mesmo uns meses antes, não passara de uma hipotética ideia, talvez um sonho, tinha sido uma concreta realidade. Tínhamos ido de automóvel de Lisboa ao Cabo Norte! Hoje, passados que são 40 anos ... volta a parecer ter sido um sonho ... !
4) Regresso pela Finlândia e Suécia
A primeira parte do regresso a casa constituiu a ligação Cabo Norte - Helsínquia, que totalizou mais de 2000 Km. À maravilhosa e surpreendente paisagem árctica, com as altas montanhas cobertas de neve e os imensos e pronunciados fiordes que a Noruega tão exuberantemente nos revelou, sucederam-se as planuras da Finlândia, retalhadas pelos famosos «mil lagos» que caracterizam a terra finlandesa.
Pela estrada nacional n.º 930 chegámos a Karasjok, ainda na Noruega, capital aliás da Lapónia norueguesa, e entrámos na Finlândia ao 22.º dia de viagem, 3 de Julho. A estrada, contudo, era irmã-gémea das norueguesas: macadame pedregoso e lamacento, por vezes bastante escorregadio e traiçoeiro, particularmente quando voltaram as fortes chuvadas que já havia dias não caiam. E nestas inóspitas e frígidas regiões tomámos também contacto com numerosas e belicosas "esquadrilhas" de melgas e mosquitos, que nos "bombardearam" sem dó nem piedade !
Oito dias depois de o cruzarmos na Noruega, estávamos de novo no Círculo Polar Árctico, agora na Finlândia, próximo de Rovaniemi, capital da Lapónia finlandesa, actualmente celebrizada pela proximidade da aldeia do Pai Natal. E a partir de Oulu e Kuopio os lagos sucederam-se uns aos outros, maiores e mais pequenos. Esta região é um dos grandes atractivos turísticos da Finlândia. Por vezes a estrada mais não era do que uma estreita faixa ladeada de altas árvores correndo entre dois grandes lagos. Savonlinna bem poderia aliás considerar-se a capital dos mil lagos finlandeses; água e terra formam ali um conjunto de extraordinária beleza.
Cruzámos assim a Finlândia no sentido norte/sul, e conhecemos o «campo» finlandês em Rautjärvi, a dois passos da mítica fronteira russa. Estávamos a menos de 200 Km de S.Petersburgo! Em plena "guerra fria", Moscovo e a União Soviética seriam contudo o destino da viagem que Vasco Callixto e a sua "equipa" fariam no ano seguinte, 1965 ! Mas em 64, as restantes duas capitais escandinavas estavam ainda no percurso de regresso.
Helsínquia é a segunda capital mais setentrional do Mundo, depois de Reykjavík, capital da Islândia. Mas há 40 anos Helsínquia era já uma bela e atraente metrópole, que nos deixou a melhor das impressões. Outra grande metrópole era também já Estocolmo; efectuámos a travessia do Báltico entre Turku e Norrtälje, prolongando-se por 9 horas de fascínio, parecendo na primeira parte da travessia que foram ali semeadas pequenas porções de terra cobertas de arvoredo denso.
Atravessando o sul da Suécia, deixámos a Escandinávia ao 37.º dia de viagem. Matámos saudades de Copenhague, onde um ano antes tinha nascido a ideia de ir ao Cabo Norte de automóvel, atravessámos a Alemanha, França, a Espanha ... e 44 dias depois da partida estávamos a chegar a Lisboa, de regresso das longínquas "Terras do Sol da Meia-Noite". Seria possível que tivéssemos ido até ao 'fim' da Europa ?! A viagem realizada parecia-nos um sonho, mas tinha sido realidade !
(Os textos desta descrição foram extraídos e adaptados do livro de Vasco Callixto "Viagem às Terras do Sol da Meia-Noite")




Tudo somado, pretexto para nove conferências e quarenta e três publicações diversas.

Falta, entretanto, à ruadojardim7 uma palavra FUNDAMENTAL:
de grande carinho e admiração por quem acompanhou, e acompanha, Vasco Callixto: D. Maria Luísa, hoje com 91 anos,  modelo, por certo, de companheirismo e AMOR ao longo de milhares e milhares de quilómetros e horas, nas mais diversas situações, nos mais diversos locais do mundo, habitados pela mais diversa gente.


Estive há dias na, digamos, "casa-museu Callixto" no concelho de Torres Vedras. Infelizmente (noutra situação, já sei o que é um apagão ...), toda a documentação fotográfica registada, acabou por desaparecer nesta infernal e insensível máquina que ajuda a rua a ser o que é - ou tenta ser: registo, MEMÓRIA, abraço.



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