terça-feira, 22 de julho de 2014

Do lido, o sublinhado (64) - "Que pensa da nossa crise?"

Entrevista concedida
por Fernando Pessoa










"- Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos - político, moral e intelectual?

 - A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico.

Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica, manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode, portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita - como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova - o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática intima.)

Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização porém não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como esse conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista
e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise. As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 - fim da Renascença em nós e de nós na Renascença - deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português, e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disso.

Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer."

 in Antologia do Humor Português










RRRenascença

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