A VOLTA AO DIA EM OITENTA MUNDOS.
Não posso estar presente, mas, ao "declarar-me" leitor da obra, sublinho-lhe o espaço dedicado pelo autor à
SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS (pág. 151, 152 e 153)
"Se um governo declarar ininteligível um almirante passar-se-ão coisas estranhas nesse país, uma vez que nunca se soube de um almirante ao qual lhe agradasse ser declarado ininteligível e ainda menos que um governo civil tivesse declarado ininteligível um almirante.
Se apesar de tudo isto o governo assim o declarar, o almirante assim declarado telefonará a outros almirantes, e haverá uma reunião secreta num certo lugar do navio insígnia onde as numerosas condecorações e dragonas se agitarão convulsivamente, tratando esclarecer coisas tais como o significado da ininteligibilidade, porque é que se declarou ininteligível um almirante e, no caso de declaração de algum fundamento, como é que pôde ser possível que o almirante assim declarado tivesse procedido ininteligívelmente a ponto de assim o declararem e assim sucessivamente.
O mais provável é que os almirantes inteligíveis se solidarizem com o declarado, na medida em que a supracitada declaração afecta o bom-nome e a honra de um colega que ao longo da sua digna carreira nunca deu a menor razão para assim ser declarado. Em consequência disso, se a declaração do governo for acatada, navega-se a todo o vapor rumo à anarquia e à retirada forçada, pelo que face à gravidade dos factos há apenas uma resposta solidária: concentrar a frota na baía e bombardear a sede do governo, que um arquitecto insensato dispôs mesmo à beira da água com as conseguintes vantagens balísticas.
No entanto, não é possível descartar a possibilidade de que os almirantes, conscientes do facto de que o governo responderá a tão legítima atitude com o vil recurso consistente na mobilização do exército e da aviação sob pretexto de vários milhares de cidadãos terem morrido no bombardeamento, acabem por decidir persuadir o almirante assim declarado a demonstrar publicamente que a declaração carece de qualquer fundamento. Para tal fim, e depois de ponderadas deliberações, convencerão o almirante de que deve cuspir sem mais dilação a pastilha elástica que este se obstina em mastigar e soprar desde o último Natal, e, no caso de o almirante assim declarado alegar que aprecia demasiado a sua pastilha elástica para deitá-la fora, encurralá-lo-ão a um canto da cabina e apertar-lhe-ão o nariz até que este abra a boca, momento em que o dentista de bordo lhe extrairá a pastilha elástica com o alicate que os dentistas navais sempre trazem consigo em semelhantes casos.
Cumprida esta etapa tão amarga quanto necessária, os almirantes comunicarão peremptória e telefonicamente ao governo que o assim declarado não só nunca foi ininteligível como a sua inteligibilidade é motivo de orgulho e alegria para o almirantado, razão pela qual se deverá revogar a declaração num prazo de vinte e quatro horas sob pena de graves represálias. O governo manifestar-se-á surpreendido por tão austera decisão e reclamará a apresentação de provas pertinentes, ocasião na qual o almirante assim declarado fará ouvir a sua voz por telefone e o governo terá uma ampla oportunidade para se aperceber de que se trata de um almirante perfeitamente inteligível e que a declaração carece agora de qualquer fundamento, terminando o episódio com um intercâmbio de frases festivas e promessas recíprocas de lealdade e patriotismo.
Como prova complementar e decorativa, enviar-se-á ao governo através de correio certificado uma caixinha em plástico na qual se acondicionará a pastilha elástica, tendo-se o cuidado de não romper o último balão produzido pelo almirante, uma vez que lhe dá um ar parecido com o de uma pérola e já se sabe como os almirantes e as suas esposas têm o mais alto respeito por estas excrescências que simbolizam o mar, não esquecendo que quando são autênticas custam horrores."
Sem comentários:
Enviar um comentário