sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Macau - "Fala-se mais português e comunica-se melhor"


by Ponto Final

Se estão na rua, Carlos e Isabel Marreiros têm uma dúvida antes desconhecida: será que os chineses os entendem? Quando Gonçalo César de Sá e Mércia Gonçalves vão a um espectáculo vêem hoje mais locais na assistência que antes e a chinesa Paulin acha os macaenses mais simpáticos. Já Rita Gonçalves até pode ter passado a infância aqui, mas só agora diz: tem amigos chineses. Os últimos 15 anos pelas famílias que viram Macau tornar-se na RAEM.
Patrícia Silva Alves
O momento foi tão solene que calou um pavilhão inteiro para ouvir os passos dos militares a calcar o chão. Pum, pum, pum. Pausa. Silêncio total.
Em seis minutos, centenas de pessoas observaram a ocasião histórica quase tão hirtas como as hastes das bandeiras que nessa noite de 20 de Dezembro foram desfraldadas. Num momento a bandeira portuguesa desceu e no seguinte subiu a bandeira chinesa, mas nem todos olharam para os movimentos da mesma forma.
Carlos e Isabel Marreiros, por exemplo, nunca mais se esqueceram do frio que fazia nessa noite de 1999. “Quando uma pessoa está com muito frio parece que lhe falta qualquer coisa. Um carinho, um abraço, confiança, não é? E precisamente nesse dia era importante a pessoa sentir segurança na cedência de soberania”, recorda Isabel Marreiros que sentiu um misto de sentimentos. “Custou-me um bocadinho quando vi a passagem da nossa bandeira, mas não foi doloroso. Foi sentimental”, continua. Há muito que a família tinha decidido ficar em Macau, a sua terra, e olhar com pragmatismo para o futuro. “Do meu lado, acreditei que se as coisas não melhorassem no futuro, também não estariam pior”, completa o marido, Carlos Marreiros.
Por isso, o arquitecto não se emocionou como alguns militares de barba rija que vieram na comitiva de Portugal para a ocasião, nem chorou como muitas pessoas lhe perguntaram antes da cerimónia. Estava como que anestesiado – era isso que respondia também a todos os jornalistas que o abordaram na altura.
“Naqueles dois últimos anos, houve televisões de todo o mundo a entrevistar-nos. Eles achavam que nós, os macaenses, éramos os ‘Últimos dos Moicanos’”, graceja o arquitecto.
Alguns desses profissionais que vieram até Macau relataram a cerimónia a partir do centro de imprensa montado junto ao pavilhão. O local foi montado e coordenado por Gonçalo César de Sá, então director regional da agência Lusa e que vivia em Macau desde 1978. Por isso, para o jornalista e também para a mulher, Mércia Gonçalves que também lá trabalhou dias a fio, esse 20 de Dezembro é uma memória feliz. Esse dia, e os meses que o antecederam, foram tempos que associam ao frenesim de uma redacção em pleno trabalho e a divulgar informações em três línguas para todo o mundo.
Provavelmente foi desse centro de imprensa que saíram as imagens que chegaram à sala da família de Arnaldo Gonçalves, em Lisboa, e à de Paulin, em Macau. O momento custou mais ao português do que à reformada nascida e criada aqui.
“Nem me lembro bem, mas acho que fiquei em casa. Eu não gosto dos comunistas e por isso não fiquei muito contente por ver a bandeira chinesa a ser hasteada, mas ao mesmo tempo não sentia nada em relação à bandeira de Portugal porque não sou portuguesa”, diz Paulin.
Já Arnaldo Gonçalves, investigador e jurista que trabalhara na Administração Portuguesa entre 1988 e 1997, nunca vai esquecer o momento em que, um pouco antes da cerimónia solene da transferência, viu o Governador Vasco Rocha Vieira, pela televisão, a levar a bandeira de Portugal ao peito. “Então não custou? É uma recordação que levo até à morte”, declara.
Para o investigador de ciência política, bem como para todos os membros das quatro famílias com quem o PONTO FINAL falou, uma coisa era certa apesar das diferentes perspectivas com que sentiram o momento da transferência: nada seria como dantes.
Ainda assim, entre todos os aspectos apontados, houve uma grande surpresa para quase todos: a explosão da indústria do jogo e o crescimento vertiginoso que trouxe a Macau.
Por exemplo, em 2005, quando Gonçalo César de Sá e a mulher Mércia regressaram do Brasil, onde o jornalista foi director da agência Lusa para a América do Sul, foram dar uma volta à Taipa.
- “O Venetian estava a começar. Até tirámos umas fotografias”, recorda Mércia.
- “E pensámos: ‘O que vai ser isto?’ Confesso que não imaginava que fosse esta mudança tão grande”, reconhece o marido.
Num espaço de poucos anos, o Cotai, onde Rita Gonçalves brincava na lama quando era pequenina, encheu-se de casinos. Agora, aos 34 anos, a filha de Arnaldo Gonçalves nem lá entra.
“Faço de conta que eles nem existem. É uma relação um bocado doentia porque uma pessoa vive numa cidade cheia de casinos, mas eu faço de conta que eles, com o seu dinheiro sujo, não existem”, defende Rita que considera que apesar de antigamente haver o Hotel Lisboa este tinha um outro glamour.
“Era menos ofensivo, se assim se pode dizer”, ajuda a mãe, a jurista Maria Rita Gonçalves que, ainda assim, tem uma opinião diferente da filha.
“Como sou funcionária pública não posso entrar nos casinos a não ser no Ano Novo Chinês, mas também não sou daqueles puritanos. Eu acho que se não fossem os casinos as pessoas não estavam cá e não tinham o que comer. Temos de ser realistas. Ou então vamo-nos embora”, acrescenta.
Para quem saiu de Macau e volta todos os anos como Laura, filha de Carlos Marreiros, chegar a casa é encontrar um sítio diferente.
“Desde o meu primeiro regresso, no meu primeiro ano do curso Medicina, que notei uma transformação completa. Sinto isso em todos os anos [são dez ano todo, já que saiu em 2004]. São sítios que já não existem, coisas novas a aparecer. Volto e não sei onde ir tomar um copo”, diz a estudante.
A mãe também não a sabe ajudar. “Quando ela me pergunta, eu nem sei onde a levar. Não sei como parar o carro, por onde posso entrar”, diz Isabel.
Apesar de a área do território ter aumentado desde 1999 (em 2009 eram mais 361,65 hectares), há quem sinta que Macau acabou por ficar um pouco mais pequeno já que há zonas que se evitam por causa do número de turistas a circular nas ruas. O antigo Leal Senado, no centro de histórico, é um deles.
“Evito ir lá e não é apenas aos fins-de-semana. Só vou lá quando tem mesmo de ser. O lugar já não me pertence”, diz Paulin. Uma visão que Arnaldo Gonçalves também defende.
“A gente não consegue ir à baixa e passear um bocadinho. Eu não evito. Eu fujo! Fujo! Só vou para lá de carro e venho de carro”, diz o investigador a rir.
Na conversa em casa da família Gonçalves, que decorre à mesa de jantar e partilhando um chá, reina a informalidade que é visível nos atropelos e discordâncias divertidas entre todos. Maria Rita diz: “Já estás a inventar, não foi nada assim!”.
Arnaldo Gonçalves anda em busca de um lugar para fazer exercício.
- “Por uma questão de aprumo físico eu devia andar um bocadinho. Mas vou para onde?”, questiona o investigador ao PONTO FINAL em tom retórico para reforçar o seu argumento.
- “Para a Guia!”, respondem mãe e filha em uníssono.
- “Elas dizem para a Guia, mas eu gosto é de ir para a rua e ver as pessoas com a máquina fotográfica. Agora vou para a rua e está sempre cheio de carros e obras que não têm planeamento”, diz Arnaldo.
A ideia de que a cidade está demasiado cheia não é partilhada pela mulher, Maria Rita, que trabalha precisamente no centro histórico.
“Sou uma pessoa que gosta de pessoas, não me incomoda. Acho que faz parte do crescimento das cidades. O que me incomoda é o tipo de comércio. Qualquer dia a gente vai ao centro e só come ouro”, remata.
Macau cresceu, mas não em todos os aspectos

Para Paulin, reformada com mais de 60 anos, outra consequência do desenvolvimento dos casinos é o nível educação dos mais jovens, sobretudo das operadoras norte-americanas.
“O que eles fizeram? Não consigo ver muito. Têm de pagar impostos, mas para além disso? O que eu vejo é que trazem problemas, como o facto de as pessoas não gostarem de estudar porque podem trabalhar lá e receber os altos salários que eles oferecem”, defende Paulin que vê criar-se uma situação complicada no futuro.
“Em teoria, isto não vai ser bom para Macau, pois os casinos não vão durar para sempre. E quando eles acabarem, o que sabem os jovens? Só sabem trabalhar lá. É disso que não gosto. Acho que não há futuro para Macau”, acrescenta.
No entanto, Paulin considera que nos primeiros tempos após a abertura dos casinos, a qualidade de vida das pessoas melhorou, para piorar agora por causa da inflação.
“Temos um salário mais elevado que antes, mas o dinheiro hoje não pode comprar muito”, sintetiza.
Gonçalo César de Sá refere que uma das mudanças que notou nestes últimos 15 anos foi na qualidade de vida da comunidade chinesa.
“Ainda ontem falávamos disso os dois. O grande aspecto positivo disto é como a população chinesa hoje vive muito melhor. Antigamente íamos a um espectáculo e era só portugueses, não se via chineses. Hoje há uma população que vai a tudo. Os espectáculos estão cheios de chineses. Há gente a viver bem. Antigamente não. Os chineses não tinham praticamente acesso a nada. Os ordenados eram baixos. Acho que foi um grande salto. Os portugueses continuam a viver bem e os macaenses também, mas a grande mudança foi aí”, assinala.
E como convivem as duas comunidades hoje?
“Antigamente havia uma mentira: a amizade luso-chinesa. Era um fosso abissal. Os chineses não se davam com portugueses e os macaenses estavam completamente divididos”, refere.
Um exemplo que Paulin não esquece foi um dia, antes de 1999, quando teve de ir pedir um certificado de nascimento aos serviços do Governo, então administrado por Portugal.
“Lembro-me de ir lá de manhã, às 5h30, para esperar que eles abrissem às nove da manhã. Quando chegava a nossa vez só podíamos perguntar uma questão, mas às vezes não sabíamos qual era a pergunta correcta e se queríamos perguntar de novo, diziam-nos: ‘Não lhe posso responder. Venha amanhã’. Eles eram macaenses porque sabiam falar português. Essa é a diferença para hoje. Agora vamos a um serviço e podemos perguntar qualquer coisa que se queira”, relata Paulin, chinesa nascida em Macau e que assinala que esta situação não se passava com todos os macaenses.
Agora, continua a aposentada, a situação mudou. “Depois da transferência, as pessoas chinesas sentem-se melhor porque os macaenses também mudaram. Ele sabiam que não se podiam comportar como deuses para sempre. Para ser justa, há alguns macaenses que são muito simpáticos, mas pode ver-se a mudança no atendimento público nas repartições do Governo”.
Outro aspecto que se alterou, consideram as famílias que falam português, é a aproximação à comunidade chinesa, sobretudo nas gerações mais jovens.
“Antes não encontrávamos tantos chineses a falar português como agora. Muitas vezes, eu e o meu marido estamos a falar em português e dizemos: ‘Se calhar aqui ao lado há gente que fala português’”, descreve Isabel Marreiros.
Gonçalo César de Sá sente o mesmo.
“Ali no nosso prédio eu já não falo português no elevador porque tenho receio. Não sei se a senhora que está ali, completamente chinesa, não fala melhor português do que eu”, exemplifica.
Já para Rita Gonçalves, a aproximação à comunidade chinesa foi uma das surpresas destes últimos 15 anos.
“Eu voltei pela primeira vez em 2006 [depois de ter saído nos anos 90] e regressei outra vez no ano passado. Eu antes conhecia pessoas macaenses, mas esta é a primeira vez que estou a fazer amigos chineses – não são macaenses”, assinala. E acrescenta: “Do ponto de vista cultural melhorou bastante, deixou de ser tão paroquial e virada para a cultura portuguesa. Agora Macau é mais universalista e internacional.”
No entanto, apesar de haver mudanças na geração de Rita Gonçalves, os pais – Arnaldo e Maria Rita – não as encontram com as pessoas que conhecem.
“No grupo etário dela eu acho possível [que hoje se façam mais pontes], mas do nosso, não”, defende Arnaldo.
Mas se há um tópico em que a família Gonçalves concorda em uníssono é a urbanização crescente e em especial a habitação pública de Seac Pai Vai – pai, mãe e filha exaltam-se ao falar deste caso.
“Quem deixou construir em Coloane devia viver lá!”, começa por dizer a mãe, Maria Rita. “Aquilo era o único sítio que as pessoas tinham para respirar. Para quê? A ganância de construir”, continua para depois rematar. E acrescenta: “Olhe, doeu-me mais do que a transição de Macau. Porque a bandeira já se sabia. Era natural, mas isto é um crime urbanístico, contra a população.”

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