domingo, 22 de março de 2015

MACAU - José Avillez e a cozinha de Macau


by PONTO FINAL









José Avillez veio à RAEM numa visita-relâmpago de três dias, a terceira em menos de um ano. Serviu centenas de refeições no Mandarin Oriental e entre o jetlag, o frenesim da cozinha e a azáfama dos clientes que lhe apareceram no restaurante, falou com o PONTO FINAL.
Patrícia Silva Alves
O chef José Avillez fez uma apresentação-relâmpago da sua cozinha em Macau a convite do Mandarin Oriental. Esteve cá três dias (entre 17 e 19 de Março) e serviu, por dia, mais de cem refeições com os preços a oscilar entre as 398 e as 1288 patacas. O restaurante esteve quase sempre cheio, mas de todos, o chef português que em Novembro passado recebeu a sua segunda estrela Michelin pelo restaurante Belcanto, em Lisboa, foi o que menos pode apreciar a gastronomia. O horário de saída levou-o sobretudo aos noodle corners dos casinos e não lhe deixou margem para conhecer a fundo a cozinha macaense. Apesar de agora não ser um plano a curto-prazo, José Avillez não exclui instalar um dos seus negócios em Macau. "Hoje em dia consegui 100 vezes mais do que alguma vez sonhei. Por isso já não digo que não", disse enquanto descansava entre o serviço do almoço e do jantar.

PONTO FINAL - É a segunda vez que vem a Macau a convite do Mandarin Oriental. Como surgiu o primeiro convite?
José Avillez - Na verdade é a terceira vez que venho cá e a segunda a fazer este evento. A primeira vez vim prepará-lo. Foi em Abril do ano passado.
A primeira vez aconteceu porque um dos coordenadores mundiais do Food & Beverages do grupo Mandarin Oriental foi ao Belcanto, em Lisboa, e gostou muito da cozinha e convidou-me para vir cá por causa da relação existente entre Portugal e Macau. E vim cá preparar pois não sabia onde era possível arranjar ingredientes e o que se fazia cá em termos de cozinha portuguesa. São uns dias divertidos, mas muito duros. Virmos para uma equipa que não conhecemos e trazermos uma data de coisas... São cinco, seis dias intensos e com um jet lag gigantesco. Ainda por cima vim directamente do Brasil e por isso estou com onze horas de diferença. Mas correu muito bem da última vez e por isso voltei. Tem vindo a correr muito bem. Estamos mais cheios do que no ano passado. São 60 almoços e quase 50 jantares quase todos os dias.
- Que tipo de restaurantes conhece em Macau?
J.A. - A primeira vez fui aos portugueses para ver o que se estava a fazer. Depois tive oportunidade de ir aos chineses e aos ocidentais com estrelas Michelin. Mas onde acabo a ir mais vezes são aos Noodle Corners porque saio à uma da manhã e preciso de comer qualquer coisa. Por isso não posso dizer que sou um conhecedor da cozinha macaense. Diria que hoje, pouca gente é [conhecedora], no sentido em que está a cair um bocadinho. Já não é de ninguém...
- Está um bocadinho disperso..
J.A. - Está disperso. Com a vinda de cada vez mais chineses para cá, há cada vez mais restaurantes chineses, e também com a vinda de grupos hoteleiros ocidentais, há cada vez mais restaurantes ocidentais. Por isso, é um bocadinho terra de ninguém, mas há um interesse da minha parte em estudar um bocadinho, só que não tenho tido muito tempo. Mas é interessante, com certeza, essa relação que se vê entre identidade e culinária nas cozinhas.
- Perguntava-lhe se tinha passeado por aqui, pois fala muito na componente emocional da criação e Macau traz muitos inputs e é muito singular e complexa. Basta andar. Ver os casinos e depois os bairros
J. A. - Isto é meio de filme, não é? Parece que não é bem deste mundo. Tanto é China, como é Portugal nos bairros mais antigos, como não é uma coisa nem outra. Parece um jogo. A pessoa entra no Venetian e dá vontade de rir com aqueles canais. O céu com as nuvens.
- Por isso lhe perguntava se Macau o tinha inspirado.
J.A. - Confesso que isto é tudo muito preparado em Portugal para depois chegar aqui e ser neste ritmo. Diria que se houvesse um projecto a médio e longo prazo, aos poucos me ia inspirando. Mas a minha cozinha é a minha identidade. É muito Portugal, mas Portugal no mundo também. O que sou hoje é com certeza fruto do que eu tenho sido desde que nasci. Pode ter muitas saudades da sua família, mas tem também saudades da comida portuguesa. Lembro-me que para aí há um ano e meio comi um ensopado de enguias e quase chorei (eu chorei, mas estou envergonhado de dizer) e pensei. "Que horror, isto lembra-me a minha infância, mas nunca o tinha comido". É mesmo algo genético, muito nosso. Algo que nos transporta.
- Conseguiu encontrar os ingredientes que precisava aqui?
J.A. - O que existe é mau e acho que o que se faz aqui em cozinha se faz com grande esforço porque há muito poucos ingredientes de qualidade, daquilo que conheço. Não quero parecer arrogante, mas mandei muitas coisas para França para virem para Hong Kong pela transportadora. Trouxe outras na mala - enchidos e queijos. Normalmente o que se encontra assim tão longe são produtos de terceira qualidade e o que é vendido como queijo da serra, na verdade é um queijo de mistura, amanteigado, que é muito diferente.
- Li numa entrevista que quando ganhou a primeira estrela Michelin, disse que ia começar a trabalhar para a segunda. Agora continuamos?
J.A. - Continuamos. Acho que trabalhar para manter é sempre difícil. Quando se diz que uma equipa de futebol quer manter o empate, normalmente perde. Portanto, agora é trabalhar para a terceira, independentemente de isso acontecer ou não. Temos de estar sempre atentos para fazer melhor. Estarmos despertos. Essencialmente é isso. Não tem a ver com as estrelas em si, mas com a necessidade de fazer o melhor e estarmos contentes com o que fazemos para não nos acomodarmos.
- Tem vários restaurantes para diferentes públicos. Macau está nos seus planos?
J. A. - A curto prazo, não. Posso vir aqui mais vezes fazer este tipo de acções, mas de facto agora temos seis restaurantes mais um take away. Somos 160 pessoas a trabalhar no grupo, mas de repente estamos do outro lado do mundo e é completamente diferente. Temos cinco no mesmo bairro e um em Cascais (o take away) e um Cantinho [do Avillez, restaurante] no Porto. É muito mais fácil gerir quando tudo está perto. Aqui, de repente do outro lado do mundo [é diferente], mas não digo que não. Há 12 ou 13 anos tinha um sonho muito concreto: estava a começar a cozinhar e queria ficar com um restaurante que ficava perto da minha casa, em Cascais, que era um cantinho que tinha 20 lugares. Era numa esquina e até já tinha a carta feita na minha cabeça. Hoje em dia consegui 100 vezes mais do que alguma vez sonhei, por isso, se naquela altura me dissessem: "Vais abrir um restaurante em Macau", eu achava uma piada porque só queria aquele restaurante pequenino... Por isso já não digo que não. Até pode ser um dia, mas para já não está previsto.
- A internacionalização está prevista?
J. A. - Está. Acho que este caminho que temos feito em Portugal leva a crer que um dia se faça no mundo. Agora o passo para fora do país é completamente diferente. Um tiro mal dado pode implicar algumas perdas dentro. Apesar de tudo ter sido construído muito rápido, foi com muito custo e trabalho e por isso é para manter.
- Com a internacionalização cada vez maior dos chefs, a competição para abrir restaurantes noutros países é maior?
J.A. - Os chefs conhecidos hoje abrem restaurantes no mundo inteiro. Mas isso funciona para o melhor e para o pior. Para o melhor porque de facto eles dão-se a conhecer. Para o pior porque nem todos conseguem manter a qualidade e não têm equipas à altura deles e há grandes desilusões. Mas diria que o nível está mais elevado que há uns anos. Por exemplo, vamos a Hong Kong e está alguns furos acima do que é Macau em termos de restauração, pois tem mercado. Eu, por exemplo, tenho muitos clientes de Hong Kong em Lisboa. Muitos clientes chineses no geral e muito de Hong Kong.
- Que estão a viajar?
J.A. - Que estão a viajar e não só. O edifício do Belcanto foi comprado por dois chineses de Hong Kong há um ano e meio por causa do visto gold.
- Com o fenómeno dos chefs-estrela aumenta o nível das pessoas que lhe aparecem na sua cozinha ou mais pessoas deslumbradas com o que vêem na tv?
J.A. - As duas coisas. Aumenta a qualidade, mas há quem ache que é só glamour e não percebem que por detrás do glamour há um grande trabalho e desistem. Há estagiários que nos chegam e ao fim de três dias nos dizem que afinal não é aquilo que querem. Acontece isso em 50 por cento dos casos. No outro dia falei com uma engenheira que estava muito chateada e queria ir mudar de vida e queria fazer um curso na Cordon Blue em Paris que custava 42 mil euros. Já estava tudo marcado, mas disse-lhe para estagiar comigo. Esteve quatro dias lá e desistiu. Disse que não era nada daquilo, que andava iludida. E eu pensei: "Olha, fiz-te poupar 42 mil euros".
- As pessoas não estão preparadas para as horas de trabalho...
J.A. - São muitas horas e isso é o que eles vêem logo ao princípio. Acho que nem se apercebem depois do que vem a seguir ao tempo. Os sacrifícios que é quando a mãe ou o pai fizerem anos, ou é a Páscoa e não puderem ir. Eu estou há seis meses sem ver o meu melhor amigo. E quando digo seis meses posso dizer um ano. Hoje em dia já não falto a um casamento, mas já faltei a casamentos onde era padrinho porque não podia ir. Tem mesmo de se querer isto porque exige sacrifícios. Tenho dois filhos pequenos e passei cá o Dia do Pai e cada um deles tinha um presente da escola e dez minutos antes de ir para o avião fui [receber os presentes a], a fingir que era o Dia do Pai. Há muita gente que quer desistir das profissões para vir para a cozinha. Não desista do jornalismo para vir para uma cozinha.

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