António Ramalho Eanes, então Presidente da República Portuguesa, iniciou faz hoje 30 anos, uma visita à China e a Macau. Foi nessa deslocação que o processo de transição da administração do território começou a ser discutido. Uma visita polémica, em que Pequim tentou apanhar o Chefe de Estado português desprevenido.
João Paulo Meneses
"Num livro que será editado em breve, a investigadora Carmen Amado Mendes afirma que a República Popular da China quis “apanhar Portugal desprevenido” antes do início da viagem oficial que António Ramalho Eanes fez a Pequim e a Macau em meados da década de oitenta. A deslocação –a primeira de um Presidente da República Portuguesa – à promissora China teve início passam hoje precisamente trinta anos.
Embora a questão de Macau não tenha sido incluída na agenda das conversações que iriam ter lugar em Pequim, a 21 de Maio de 1985, Ramalho Eanes antecipou as intenções das autoridades chinesas e, como esclarece no depoimento enviado a este jornal, “na preparação da visita, nomeadamente com o Governo, essa eventualidade foi abordada”. Ficou, aí, acertado que Portugal diria em Pequim o que sempre disse: “ A transferência de administração poder-se-ia fazer mediante discussão diplomática entre as duas partes e o acordo que viesse a ser estabelecido” (ver texto de opinião do antigo presidente da República publicado nesta edição do PONTO FINAL).
Terá sido, pois, com surpresa que o Ramalho Eanes ouviu o então primeiro-ministro Mário Soares distanciar-se do que ficou decidido em Pequim. Também as reservas manifestadas pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama – que o acompanhou na deslocação a Pequim - terão feito para o então presidente pouco sentido.
“A minha visita (…) situa-se no quadro definido e consequente situação irreversível, visto que a Portugal apenas cabia cumprir as obrigações acordadas com a República Popular da China, respondendo à responsabilidade assumida com a população de Macau, respeitando a sua dignidade e interesses, intensificando a sementeira dos seus interesses naquele território da promissora China”, refere ao PONTO FINAL.
“Ao regressar a Portugal, Eanes foi acusado de ter desencadeado o processo para a entrega de Macau, quando podia ter evitado aquela que foi a primeira visita de um chefe de Estado português à China”, afiança Carmen Amado Mendes na versão em língua portuguesa do livro “Portugal, China and the Macau Negotiations”. Publicado há dois anos em língua inglesa, o volume será reeditado em breve pelo Centro Científico e Cultural de Macau.
“Uma recusa por parte de Ramalho Eanes não teria feito sentido e em nada teria alterado a posição da China. Os líderes chineses já há muito tinham decidido o que fazer relativamente a Macau e, uma vez concluído o processo negocial de Hong Kong com o Reino Unido, não adiariam a questão por muito tempo”, defende a professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Como lembra Ramalho Eanes, um ano antes, quando o vice-primeiro-ministro Mota Pinto visitou a China “a questão de Macau foi abordada”. Posteriormente, em Novembro de 1984, o presidente chinês Li Xiannian visitou Lisboa e a questão da soberania de Macau foi novamente reabilitada e trazida à discussão pelas autoridades chinesas. Meses depois, em meados de 1985, o então governador Almeida e Costa ouviu do então presidente Li Xiannian a referência “negociações pacíficas” relativamente a Macau, como relata Carmen Amado Mendes em “Portugal, China and the Macau Negotiations”.
Perante um tal contexto histórico, a reacção de surpresa que se verificou depois do regresso de Ramalho Eanes a Lisboa, deve ser analisada por ângulos diferentes. Por um lado, a opinião pública portuguesa “não tinha sido informada de que os chineses já tinham mostrado interesse em que o problema da administração de Macau fosse negociado, e que tal merecera a concordância governamental portuguesa”, concede Eanes. Por outro, “houve intervenções no Parlamento, essas menos compreensíveis, pois os parlamentares tinham obrigação de conhecer o Acordo de Paris, com o qual, aliás, se tinham congratulado”. O convénio a que Ramalho Eanes se refere é a famosa “Acta Secreta” assinada em 1979 na capital francesa, na qual Lisboa concordou com a entrega de Macau à República Popular da China no momento em que os dois países considerassem mais apropriado. Recém-empossado como primeiro-ministro, Cavaco Silva protagonizou uma situação caricata em plena Assembleia da República ao garantir que o acordo assinado entre Coimbra Martins e Han Kehua nunca existira.
O compromisso firmado por Ramalho Eanes aquando da deslocação a Pequim continuou a merecer críticas ao ex-Presidente muitos anos depois. Em 1999, em declarações ao PONTO FINAL, outro antigo Chefe de Estado, Mário Soares, apontou o dedo a Eanes por não o ter consultado. Entrevistado por este jornal, o general rejeitou as acusações que lhe foram dirigidas, desafiando o seu sucessor na presidência para um debate a dois.
Mas não foi apenas em Lisboa e em Macau que a iniciativa de Ramalho Eanes aquando da visita a Pequim foi mal entendida: “A parte chinesa adoptaria, nesta fase, uma estratégia que visava apanhar Portugal desprevenido”, considera Carmen Mendes.
Primeiro, “durante os preparativos da visita, a Embaixada da RPC em Lisboa anunciou que a agenda não incluiria nenhuma questão relacionada com Macau”. Contudo, “em vésperas da visita de Ramalho Eanes, o embaixador de Portugal em Pequim foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, onde foi informado de que a questão de Macau constaria da agenda. Era já demasiado tarde para o embaixador Costa Lobo informar o Presidente das intenções chinesas, uma vez que este já se encontrava no avião a caminho de Pequim. Uma vez chegados ao aeroporto, o Presidente Ramalho Eanes e o Ministro dos Negócios Estrangeiros Jaime Gama foram acompanhados pelos seus homólogos em carros diferentes, sem que o embaixador tivesse oportunidade de os pôr a par da situação”, relata Carmen Mendes na versão revista e alargada de “Portugal, China and the Macau Negotiations”.
“Ao comunicar esta informação 24 horas antes da chegada de Eanes, a China não poderia ser acusada de não ter transmitido oficialmente a decisão de incluir Macau na agenda, mas garantia que o Presidente não seria informado. Eanes seria apanhado de surpresa à chegada a Pequim e não regressaria a Portugal sem assinar o Comunicado Conjunto sobre o início das negociações”, conclui a autora.
É neste contexto que a 22 de Maio de 1985, faz amanhã trinta anos, Eanes se encontra com primeiro-ministro chinês Zhao Ziyang, que substituiu o presidente Li Xiannian, que se encontrava doente. Zhao informou o Presidente português “que havia chegado a hora de resolver esta questão”. E Eanes “decidiu que seria ele próprio a levantar a questão e não os chineses, por duas razões: para respeitar o protocolo, segundo o qual os convidados são sempre os primeiros a falar, e para abordar o assunto nos termos mais favoráveis”.
O ex-presidente olha agora para trás e lembra que no encontro com Zhao Ziyang teve “ocasião de dizer que (…) que me parecia que o entendimento amigável, alcançado em 1979, aquando do estabelecimento de relações diplomáticas entre ambos os países, permitia uma clara e ajustada caracterização da situação”. O então presidente transmitiu que “era convencimento de Portugal que o processo negocial seria iniciado quando as duas partes o entendessem, mas em qualquer circunstância com o objectivo e a preocupação de preservar os legítimos interesses da República Popular da China, de Portugal e de Macau”.
Deveria Eanes ter cancelado a viagem, como foi defendido antes e mesmo depois? Carmen Mendes entende que “em última análise, a recusa de Eanes em ir a Pequim teria irritado a China e retirado poder negocial a Portugal”.
Quando a France Press traduziu mal Soares…
Durante uma visita ao Japão, em 1984, o então primeiro-ministro Mário Soares terá afirmado que “Macau continuaria a ser administrado por Portugal mesmo depois da recuperação da soberania de Hong Kong pela China em 1997”.
A China considerou estas afirmações “muito inoportunas e infelizes”, revelou Eanes, numa entrevista que concedeu em 1999 ao PONTO FINAL. O ex-Presidente da República lembra que o embaixador chinês em Lisboa lhe pediu, então, uma audiência.
O governo de Mário Soares explicou posteriormente que se tratou de um erro de tradução por parte da Agência France Press, mas Eanes não esquece o caso. No depoimento que enviou agora a este jornal, lembra que estas declarações, atribuídas pela Agência France Press ao Primeiro-Ministro português, “levantaram alguma preocupação na República Portugal da China. Mas, logo a 9 de Julho de 1984, o Governo confirmou, perante o Presidente da República, não ter havido modificação na posição portuguesa relativamente a Macau, tendo-se tratado de um erro na tradução das declarações proferidas pelo Primeiro-Ministro no Japão e que telegramas, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para as Embaixadas de Portugal em Pequim e Tóquio, esclareciam o assunto”. JPM
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