Sara Figueiredo Costa
Lisboa rendeu-se aos sabores e aos mistérios da cozinha internacional, alberga restaurantes de tudo quanto é lado, mas na capital portuguesa as iguarias macaenses são um bem escasso. A Casa de Macau em Portugal apercebeu-se da lacuna e propõe todas as semanas um bom repasto com sabor a Oriente. O Minchi é o rei das Comizainas, mas não está só.
"Começa-se por uma constatação: não há em Lisboa um único restaurante, tasca ou cantina onde se possa provar regularmente comida de Macau. Nem os macaenses – ou aqueles que viveram algum tempo em Macau e entretanto regressaram – têm onde matar saudades desta gastronomia, nem os lisboetas imaginam que exista uma cozinha tão rica que podia ser-lhes tão acessível como as inúmeras gastronomias que podem encontrar-se na capital portuguesa. Para contrariar essa realidade, a Casa de Macau criou a Comizaina, um dia por semana em que toda a gente pode experimentar um almoço macaense com tudo a que tem direito.
Situada entre as muitas vivendas da Avenida Gago Coutinho, mesmo ao pé do aeroporto de Lisboa, a Casa de Macau passa despercebida a quem não a conheça. Procurando com atenção, a estátua de Kun Iam no jardim e a placa com o nome da instituição assinalam o lugar certo, no número 142. Todas as quartas-feiras, o portão está aberto à hora de almoço e quem tiver feito a inscrição até ao dia anterior será recebido numa sala luminosa, decorada com quadros alusivos a Macau, e por um aroma que, vindo da cozinha, anuncia a boa refeição que ali se pode provar.
O PONTO FINAL foi à última Comizaina do mês passado e, antes do Minchi e da Galinha Chau Chau Parida, conversou com Graça Pacheco Jorge, autora do livro 'A Cozinha de Macau da Casa do Meu Avô' e a cozinheira que assegura os repastos com a dedicação de quem conhece a cozinha macaense desde sempre e a quer divulgar junto dos neófitos lisboetas: "Costumo fazer alguns workshops aqui na Casa de Macau e foi assim que surgiu esta ideia da Comizaina, na qual já tinha matutado. Como não há, em Lisboa, nenhum restaurante de cozinha macaense, falei com a direcção e sugeri que fizéssemos aqui um dia semanal com esta cozinha. Tem tido muita adesão, porque quem quer provar a cozinha de Macau, só consegue fazê-lo aqui”, explica.
Com a comida elevada a espectáculo quotidiano, enchendo diariamente programas de televisão e páginas de jornal, e com o aparecimento constante de novos restaurantes onde a chamada cozinha de fusão parece ser o conceito mais na moda, não se compreende o desconhecimento generalizado relativamente àquela que é, na história relacionada com Portugal, a cozinha de fusão por excelência. Como explica Graça Pacheco Jorge, "quando os navegadores saíram daqui para as descobertas, foram parando pelo caminho, porque tinham de reabastecer, tratar dos barcos, etc. Em cada sítio onde paravam reabasteciam com os produtos locais e aí foram introduzindo na gastronomia portuguesa que levavam daqui produtos que não conheciam, mas que foram usando. Quando chegaram ao Oriente, e concretamente a Macau, já levavam sabores da África, da Índia, de Malaca e de todos os sítios onde pararam. Depois, claro que a China teve uma enorme influência nesta gastronomia, não só na preparação, com a maneira de cozinhar rápida, como nalguns ingredientes. Já as especiarias vieram sobretudo da Índia, porque na altura era aí que estava a parte administrativa de Macau."
A confusão entre comida macaense e comida chinesa é frequente, talvez pelo desconhecimento que existe relativamente à cultura de Macau. Nos workshops que orienta regularmente, Graça Pacheco Jorge faz questão de esclarecer o equívoco, deixando claro que a cozinha macaense é uma cozinha de raiz portuguesa, cruzada com as referências de outras paragens. Entre os muitos ingredientes que definem a gastronomia de Macau, é difícil escolher um ou dois que sejam a sua imagem de marca. Apesar da dificuldade, a responsável pela Comizaina das quartas-feiras escolhe alguns: "O gengibre, o molho de soja, os legumes que se encontram em Macau. Aqui, os legumes são diferentes e essa é uma das dificuldades com que me deparo. As couves não têm nada a ver com as que se encontram em Macau. As couves na China são tenrinhas, há muita variedade, e aqui são mais rijas. Tive de adaptar as receitas aos legumes que encontrava cá. Felizmente, como agora há muitos chineses a viver em Portugal e muitos supermercados chineses, já encontro outras coisas que vêm de lá, ou que foram introduzidas aqui e cultivadas. Mas no início, em casa, tinha muita dificuldade. Nos anos 60 não havia nada, nem sequer bom arroz." Mas, de certo modo, a capacidade de adaptação ao que existe no local não é uma das características da gastronomia macaense? "Sim, cozinha-se com o que existe, adaptando, mas mantendo sempre aquele sabor das especiarias, do gengibre, da soja. A combinação é importante”, esclarece.
Na sala da Casa de Macau, o Minchi chega à mesa numa taça de vidro, deixando ver a carne picada, escurecida pelo molho de soja, e as batatas aos cubinhos. Não há ovo estrelado, ao contrário do que acontece com outras receitas, e a ausência permite perceber uma característica importante deste património: “Todos os macaenses fazem cozinha de Macau, mas cada família tem o seu segredo”, explica Graça Pacheco Jorge. “As receitas podem diferir num tempero, ou noutra coisa. O que eu faço são as receitas da minha família, a família Jorge, e hão-de ser ligeiramente diferentes das receitas de outras famílias. Há quem faça o Minchi com ovo estrelado, por exemplo, mas eu faço como aprendi em casa e não uso ovo.” Esclarecidos, avançamos para a Galinha Chau Chau Parida, um prato que tradicionalmente se recomendava às mulheres que tinham tido filhos há pouco tempo, por ser um poderoso reconstituinte físico. O açafrão e o gengibre predominam, criando um molho amarelo de travo ligeiramente ácido que se combina na perfeição com o arroz branco. Para fechar a refeição, creme de manga a fazer jus ao nome , suave, cremoso e fresco, a dar coragem a quem aqui almoçou para regressar ao sol impiedoso que faz arder Lisboa por estes dias.
No dia em que o PONTO FINAL almoçou na Casa de Macau, cerca de quinze pessoas fizeram o mesmo, naquele que nem sequer foi um dia movimentado. Quem aqui vem pode conhecer bem os pratos que vai comer ou vir à aventura, como conta Graça Pacheco Jorge: “Há muita gente que viveu em Macau e vem matar saudades, claro. Mas também têm aparecido muitas pessoas que não conheciam esta gastronomia, nem sabiam que Macau tinha uma cozinha própria, e isso é que é interessante, dar a conhecer às pessoas os sabores que fazem parte da cultura de Macau.”
Em Junho e Julho, a Comizaina continua. O Minchi mantém-se, mas o menu passa a incluir Galinha à Portuguesa e Creme de Leite, neste mês. Galinha Excelente e Bebinca de Leite entram no cardápio, no próximo. Talvez depois do Verão os lisboetas já possam dizer que conhecem um pouco da gastronomia macaense, a mesma gastronomia que Graça Pacheco Jorge está disposta a ensinar a quem a quiser aprender: “Já trabalhei uma semana no Hotel Tivoli, com quatro chefes portugueses que cozinharam o que lhes dei a conhecer na visão deles, mas não consegui interessar nenhum a fazer cozinha de Macau nos seus restaurantes depois disso. Enquanto puder e a Casa [de Macau] estiver interessada, estarei aqui. Posteriormente, pensamos entusiasmar algum jovem que tenha feito o curso de cozinha e que possa estar interessado em aprender, para ficar aqui a cozinhar ou arranjar um espaço próprio.” Pode ser que entre os tantos restaurantes dos quatro cantos do mundo, Lisboa ganhe, finalmente, um espaço para provar a comida de Macau."
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