domingo, 13 de setembro de 2015

Reler o PADRE ANTÓNIO VIEIRA (2)

Retomo a transcrição de uma ou outra carta do Padre António Vieira, no dia em que os mais fiéis dos fiéis amigos/leitores que tenho têm mais tempo livre, penso eu, para se sentarem aqui ... Não é, portanto, inocente a publicação desta carta HOJE: é a forma que arranjei de tentar não ser chato e, do mesmo passo, procurar a vossa companhia - que revejo sempre com o maior agrado e, quando a técnica me deixa e o tema proporciona, tomo a liberdade de transcrever.

Apesar de ser Dia de Missa, não é prédica, mas ... mas é, quase actual, ou actual mesmo, António Vieira, o padre, que, pelo menos, a CULTURA fixou:

Ao padre jesuíta Baltasar Duarte, em 1695, a partir da Baía

"Sem embargo da carta circular, com que me despedi na frota passada de todos os senhores que me costumavam escrever, pelo impedimento com que eu não podia, tive contudo carta do senhor Conde da Castanheira, e do senhor Diogo Marchão Temudo, e por outra similhante fineza a teve o Padre José Soares, meu companheiro, do senhor Marquês das Minas, do senhor Roque da Costa Barreto, e do senhor Francisco Barreto, solicitando por esta via novas de minha vida, honrando-me também nesta frota o senhor Almotacé-mor do reino com carta sua. Mas que pouco tempo basta para maiores mudanças! Eu tornei a dar outra queda, de noite, pela escada fatal, muito mais perigosa que a primeira, com uma ferida na cabeça, em ambas as mãos estropiadas, escapando milagrosamente com vida, ou com ametade dela, porque ainda me ficava a mão e a assistência do meu Padre José, ao qual sobreveio depois uma doença de hidropesia ou inchação, que os médicos julgam por incurável. Neste estado, sem mãos, nem cabeça, nem companhia, me fica só o coração, por parte do qual peço muito a Vossa Reverendíssima se sirva de me querer desculpar com os ditos senhores, cujas cartas não pude ler sem lágrimas, e mágoa grande; e que esta mesma represente Vossa Reverendíssima aos padres, e confessor de El-Rei, mestres dos princípes, Paulo Mourão, etc.

Com estes avisos do céu me resolvi a estreitar mais o retiro do meu deserto, empregando os poucos dias que restam, na conta de tão larga vida, como a de oitenta e oito anos. Mas nesta falta de forças de mim mesmo (em quem propriamente se verifica Omnia fert aetas, animum quoque *) me vejo de novo obrigado com duas obediências, uma Real, e outra da Religião, a prosseguir, e acabar Clavis Prophética, a que depois de partida a frota me aplicarei do modo que for possível, intendendo que é a vontade de Deus, que a morte me ache com esta obra de tanto serviço seu, ao menos no pensamento e na voz, já que não pode ser nas mãos. Na outra carta, quando me faltava uma só, pedia eu por mercê aos que ma faziam de escrever-me, que, pois tinha a direita impedida para responder, se contentassem com que levantando ambas ao céu, mais desocupada e mais frequentemente os encomendasse a Deus; é agora que me obrigam a que ressuscite o que estava quase sepultado, e o imprima, pode Vossa Reverendíssima rogar aos mesmos senhores da minha parte, que hajam por bem me ler em letra de fôrma, pois eu não posso escrever na de mão; e para que não
falte este modo de cartas a quem a devo, por não levarem sobrescritos, remeto com este papel a Vossa Reverendíssima a lista das pessoas, a cujas mãos se hão-de oferecer os livros depois de impressos, se a morte no caminho não assaltar os correios. A vida de Vossa Reverendissima guarde Deus muitos anos, como desejo.
Baía, 22 de Julho de 1695.
De vossa mercê muito obrigado servo
António Vieira."


* A idade destrói todas as coisas, incluindo o ânimo.

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