sábado, 26 de setembro de 2015

TROCA DE GALHARDETES (18): A amante





A ESTRANHA VERDADE

"Alguns anos depois de eu ter nascido, meu pai conheceu uma estranha, recém-chegada à nossa pequena cidade.
Desde o princípio, o meu pai ficou fascinado com esta encantadora personagem e, em seguida, convidou-a a viver com a nossa família.
A estranha aceitou e, desde então, tem estado connosco.
Enquanto eu crescia, nunca perguntei sobre o seu lugar em minha família; na minha mente jovem já tinha um lugar muito especial.
Meus pais eram instrutores complementares... minha mãe ensinou-me o que era bom e o que era mau e meu pai ensinou-me a obedecer.
Mas a estranha era nossa narradora.
Mantinha-nos enfeitiçados por horas com aventuras, mistérios e comédias.
Tinha sempre respostas para qualquer coisa que quiséssemos saber de política, história ou ciência.
Conhecia tudo do passado, do presente e até podia predizer o futuro!
Levou a minha família ao primeiro jogo de futebol.
Fazia-me rir, e fazia-me chorar.
A estranha nunca parava de falar, mas o meu pai não se importava.
Às vezes, minha mãe levantava-se cedo e calada, enquanto o resto de nós ficava a escutar o que tinha que dizer, mas só ela ia à cozinha para ter paz e tranquilidade. (Agora me pergunto se ela teria rezado alguma vez para que a estranha fosse embora).
Meu pai dirigia o nosso lar com certas convicções morais, mas a estranha nunca se sentia obrigada a honrá-las.
As blasfémias, os palavrões, por exemplo, não eram permitidos em nossa casa… nem por nossa parte, nem de nossos amigos ou de qualquer um que nos visitasse.
Entretanto, a nossa visitante de longo prazo usava sem problemas a sua linguagem inapropriada que às vezes queimava os meus ouvidos e fazia meu pai se retorcer e minha mãe ruborizar-se.
Meu pai nunca nos deu permissão para tomar álcool. Mas a estranha animou-nos a tentá-lo e a fazer regularmente.
Fez com que o cigarro parecesse fresco e inofensivo, e que os charutos e os cachimbos fossem distinguidos.
Falava livremente (talvez demasiado) sobre sexo. Os seus comentários eram às vezes evidentes, outras sugestivos, e geralmente vergonhosos.
Agora sei que meus conceitos sobre relações foram influenciados fortemente durante a minha adolescência pela estranha.
Repetidas vezes a criticaram, mas ela nunca fez caso dos valores dos meus pais, mesmo assim, permaneceu no nosso lar.
Passaram-se mais de cinquenta anos desde que a estranha veio para a nossa família. Desde então mudou muito, já não é tão fascinante como era no princípio.
Não obstante, se hoje você pudesse entrar na guarida dos meus pais, ainda a encontraria sentada em seu canto, à espera que alguém quisesse escutar as suas conversas ou dedicar o seu tempo livre a fazer-lhe companhia...
O seu nome? Ah, o seu nome…

Chamamos  TELEVISÃO! 
É isso mesmo: a intrusa chama-se TELEVISÃO.

Agora ela tem um marido que se chama Computador, um filho que se chama Telemóvel e um neto de nome Tablet.

A estranha agora tem uma família. A nossa será que ainda existe?"

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