domingo, 27 de dezembro de 2015

Do lido, o sublinhado (73): MEMÓRIA DA TERRA, de José Martins Garcia*

* ex-director do Jornal Novo, 
imediatamente a seguir a Artur Portela

"... Talvez o meu irmão, o eloquente, o adestrado em habilidades e subtilezas forenses, me pudesse hoje valer. Lamento, com a intuição da inutilidade de todas as lamentações, a minha inutilidade de matemático - casmurro, digamos - devidamente diplomado a qualquer espécie de realidade. Talvez o meu irmão - morto? exilado? desaparecido? suicidado? - desfizesse, hoje, se me pudesse ouvir, os restos de honestidade, a palavra "nefilibata" que me etiquetou. Talvez, perito como era na pontaria verbal,  me ensinasse o termo exacto para esta mistura de riso e lágrima, que me sinto à deriva - como sinal abjecto numa equação insulada ... coisas assim sem pés nem cabeça, pois rigorosamente não os possuem teoremas.

O abstracto - eu. Concreto - ele. Olho, nauseado, este mar de cativeiro, desde a vidraça embaciada à indistinção lá longe. Saturação pela certa conjugada entre os meus miolos de "nefilibata" e um quadro sombrio onde não cabe nenhuma demonstração. Não sei escrever decentemente, não sei registar esta bulha que está no vento e no meu sangue aguado. Nada conheço dessa arte que ele bem dominava - a arte de convencer por palavras, com razão, sem razão, contra a razão ... Sempre nos detestámos. Contra todas as razões, possivelmente. Ele falava como se discursasse, ele discursava como se escrevesse, ele escrevia como quem engraxasse sapatos destinados ao rodopio das conquistas, ele trocava qualquer sentido e triunfava. "Ironia!"

Encontro-me onde me encontro tal como me poderia encontrar em qualquer ponto do planeta ... Sem razoáveis projectos nem aceitáveis justificações. Para viajar até aqui, descobri um único pretexto: de duvidosa eficácia, parece-me, no respeitante à doença que me persegue desde quando tive consciência dum "quando". Troquei o meu quarto de sempre, e cronicamente insuportável, o da janela donde avistava uma nesga eterna de Tejo, por este cubo tosco dum "hotel" - como lhe chamam - mais desleixado que uma pensão manhosa duma qualquer manhosa viela de Lisboa. E, se lá arrecadava antigos motivos para um fastio sem tréguas, aqui me vou tecendo razões para me pôr ao fresco. O mundo é estreito como a vida; a vida é irremediável como tudo o que escapa à morte; a banalidade reside no dizer como no realizar; o sangue dos outros pregou-me de pirraça de me fazer nascer.

Com quase vinte e sete anos e nenhumas ambições sinto-me encarnado de preguiça."


Sem comentários:

Enviar um comentário