"A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico.
Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica, manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita - como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova - o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática intima.)
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização porém não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como esse conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada.
É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se."
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