O Comissariado contra a Corrupção desistiu de criminalizar o tráfico de influências. O recuo é visto como lógico e natural: será mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que Macau legislar contra a cunha ou até regulamentar o lóbi.
Sónia Nunes
"Nas vésperas de Macau ser avaliado pelas Nações Unidas, em 2013, o Comissariado contra a Corrupção fez uma proposta para criminalizar o tráfico de influências. A lei não avançou. Porquê? A explicação oficial é que não há qualquer obrigação internacional em legislar sobre a matéria. Fora do Governo, ressalta a convicção de que é “impossível” fazer da cunha crime, numa terra onde toda a gente se conhece e a tendência é mexer os cordelinhos para furar um aparelho de serviço público lento e burocrático.
Faltava pouco mais de um ano para Chui Sai On terminar o primeiro mandato como Chefe do Executivo quando o CCAC revelou que estava prestes a entregar uma proposta de lei para criminalizar o tráfico de influências. Sem indicar a partir de que momento o exercício de ascendência junto de decisores políticos deixaria de ser legítimo, o comissariado disse ao que ia. O objectivo da nova legislação seria colmatar as “deficiências da ordem jurídica” contra a criminalidade de colarinho branco e “dar mais um passo em frente” na “efectiva implementação” da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Assim falou o Comissariado em 2013, então chefiado pelo juiz Vasco Fong, actual coordenador do Gabinete de Protecção de Dados Pessoais.
Mas o que no primeiro mandato de Chui Sai On parecia ser encarado como uma obrigação internacional hoje é tratado como uma opção. “Não decorre da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção para a RAEM qualquer obrigação de legislar sobre a matéria”, contrapõe o CCAC, agora com o ex-director dos Assuntos de Justiça André Cheong na liderança.
A Organização das Nações Unidas apenas sujeita os signatários do pacto internacional a tipificar cinco crimes: suborno a agentes públicos, corrupção activa de funcionário público estrangeiro, fraude e branqueamento de capitais. Sobre o tráfico de influências, a Convenção diz apenas que “cada Estado Parte considerará a possibilidade de adoptar as medidas legislativas (...) necessárias”.
É o que Macau diz estar a fazer. O CCAC afirma que o tráfico de influências é matéria “sob observação” – “sendo que se, e só quando, as circunstâncias o justificarem se ponderará avançar com a eventual elaboração de uma proposta [de lei]”. Ou seja, se o diploma não avançou “terá sido por não se ter concluído pela oportunidade da mesma”. Porquê? O comissariado responde com silêncio.
Macau fez o pleno das obrigações internacionais que resultam da Convenção contra a Corrupção, ratificada pela República Popular da China em 2006, quando, em 2014, a Assembleia Legislativa aprovou o “regime de prevenção e repressão dos actos de corrupção no comércio externo”. É esta a lei que criminaliza o pagamento de subornos a funcionários públicos estrangeiros.
O relatório de 2014 do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, o “guardião” da Convenção contra a Corrupção, não faz qualquer referência a Macau. O PONTO FINAL entrou em contacto com a organização, através da delegação para a região da Ásia-Pacífico, para esclarecer a omissão mas não obteve resposta.
“Meio Macau ia preso”
João Miguel Barros, advogado em Macau há mais de 20 anos, e uma das vozes mais críticas à actuação do Comissariado Contra a Corrupção, diz que a decisão de não tratar o tráfico de influências como crime autónomo revela “bom senso”: “Meio Macau ia preso. Macau fechava, tal é a promiscuidade no exercício de cargos públicos e privados”, salienta o jurista, para defender que “o estranho” neste processo é o facto de uma proposta de lei deste género ter chegado a ser considerada. “É impossível [criminalizar o tráfico de influências em Macau]. Não há maneira de o fazer, pelo modo como Macau está organizado”, declara.
O advogado refere-se, em concreto, à representação dos grupos de interesse na Assembleia Legislativa, com o sector empresarial em maioria, e à composição do Conselho Executivo, o principal órgão de influência em Macau e que emerge da Lei Básica. A mini-constituição obriga o Chefe do Executivo a consultar os conselheiros antes de “tomar decisões importantes” ou de legislar sobre o quer que seja.
A última nomeação dos membros do Conselho Executivo foi feita em Dezembro de 2014, aquando da mudança de Governo, com Chui Sai On a confirmar que empresários e figuras do campo tradicional pró-Pequim estão em franca vantagem. São “figuras públicas” que se destacam também pelos negócios que têm com o Governo. Dois exemplos mediáticos e polémicos: Eddie Wong e Liu Chak Wan. O primeiro é o arquitecto por excelência na área da saúde pública e conseguiu o projecto do hospital das Ilhas por 235 milhões de patacas. O segundo, além das ligações à Transmac, destaca-se por ter conseguido segurar a concessão de dois terrenos no Patane. Os lotes foram comprados em 2008, mas o prazo de arrendamento só começou a contar cinco anos depois, quando o empresário e as Obras Públicas chegaram a acordo quanto ao desenvolvimento do lote e a concessão foi formalmente feita.
A política de solos do Governo mexe também com interesses de deputados. A última sessão legislativa ficou, de resto, marcada pelo travão posto pelo presidente da Assembleia Legislativa a uma audição sobre os terrenos que ficaram a salvo da operação de resgate que está a ser feita pelo Governo. Dos 16 terrenos em causa, pelo menos 12 estavam ligados a deputados. Destaca-se um: um lote no Cotai destinado à construção do parque temático “Hello Kitty Land”, que junta interesses de quatro deputados.
O terreno está em nome da empresa Macau Parque Temático e Resort, hoje representada por Angela Leong, mas que teve Chui Sai Cheong - irmão do Chefe do Executivo - como sócio fundador. O deputado deixou a administração da empresa em 2008, mas a sociedade de auditores de que é proprietário, a CSC & Associados, mantém-se como fiscal. O projecto do parque temático foi apresentado em 2010, com o deputado e mandatário de campanha de Chui Sai On, Vong Hin Fai, como consultor jurídico e conta ainda com o investimento de Chan Chak Mo, também membro do Conselho Executivo.
A decisão de não autorizar o inquérito parlamentar foi lida por juristas e observadores políticos como uma fuga para a frente. Ho Iat Seng terá tentado fazer uma gestão dos conflitos de interesse em presença e poupado a AL ao embaraço de ter parte da bancada impedida de votar a proposta de audição.
Só a mando de Pequim
Em pouco mais de 30 quilómetros quadrados cabe uma população superior a 640 mil pessoas e uma rede de relações pessoais, que é usada em interesse próprio e onde um grupo tem acesso especial aos decisores políticos, descreve Bryane Michael, investigador na área do direito financeiro e económico na Universidade de Hong Kong e na Universidade de Oxford. Com cinco anos de experiência no Banco Mundial e na OCDE - e após ter participado em reformas do serviço público em vários países - o actual assessor do Governo de CY Leung diz que a forma como Macau funciona é precisamente a razão para legislar o exercício de influência: “Muitos países tornam ilegal (se não criminalizam, pelo menos têm sanções administrativas) o tráfico de influência. Já fiz leis neste sentido em vários países, sobretudo na Europa Central e nos Balcãs. Estas economias – como Macau – são sítios pequenos onde toda a gente se conhece”, destaca Bryane Michael. “Manter o livre acesso a oportunidades é uma verdadeira luta”, assegura.
A diferença de Macau, continua, é que “não tem a oportunidade de começar de novo como os países do Leste Europeu tiveram”. A confirmar-se que “as pessoas com influência não têm qualquer interesse em adoptar este tipo de leis”, há apenas um único agente capaz de convencer o Executivo e a elite político-económica do contrário: o Governo Central. “Este tipo de legislação nunca será aprovada sem interferência exterior, como a de Pequim”, vinca Bryane Michael.
A igualdade e imparcialidade no exercício da Administração são os bens jurídicos que a criminalização do tráfico de influências procura proteger. Aqui entra também o argumento económico e do investimento externo. Mas Bryane Michael poupa-se ao discurso: “É inútil descrever porque é que isto é importante uma vez que esta lei nunca será aprovada”. Ainda assim, o consultor deixa a ideia geral de que “com o tráfico de influências, os amigos ficam com os empregos e com o dinheiro – sejam ou não os mais qualificados”, remata.
“A lógica da igualdade e da justiça social passava mais por melhorar o actual regime de incompatibilidades e impedimentos”, contrapõe João Miguel Barros. O advogado, que esteve do lado da defesa no maior caso de corrupção de Macau, diz que o “grande problema” está na Administração Pública.
O caso Ao Man Long resultou “numa máquina [administrativa] construída para não tomar decisões”. “Nunca existiu uma estrutura tão burocrática, tão extensa e tão acéfala como esta. Quando há dificuldade em resolver o quer que seja, quando ninguém toma decisões, isso é um convite à corrupção e ao tráfico de influências”, desenvolve o causídico. Para Barros, “o problema tem de ser atacado pela raiz, com a criação de mecanismos de transparência e processos de decisão mais ágeis”.
A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico também relaciona actos de corrupção à maior ou menor eficiência da Administração Pública.
A alternativa: regular o lóbi
Nos últimos cinco anos, Bryane Michael e um grupo de académicos da Universidade de Hong Kong têm vindo a estudar formas de tornar a Região num centro financeiro mais atraente. Num sistema onde a vasta gama de conselhos consultivos do Governo dá logo à partida mais influência a uns do que a outros, regular a relação que já existe entre poder político e grupos de interesse é a proposta mais imediata.
Bryane Michael entende que não há nada contrário à cultura chinesa na regulamentação do lóbi e apresenta o caso de Taiwan como potencial modelo a seguir. Desde 2008 que quem exerce pressão junto do poder político taiwanês tem de estar registado como lobista e é obrigado a publicitar a actividade. O exercício de influência está também limitado. Dois exemplos: ninguém de Macau, Hong Kong e República Popular da China pode fazer lóbi na ilha; e os deputados eleitos não podem exercer influência a favor de empresas em que sejam administradores ou onde tenham uma participação superior a dez por cento.
João Miguel Barros diz que a regulamentação do lóbi, “enquanto actividade legal e de defesa de interesses legítimos”, é a “abordagem pela positiva” a um fenómeno estabelecido na cultura política de Macau. “É uma proposta mais realista”, observa.
O advogado aponta para um registo de “transparência e ética”, em que os lobistas ficariam obrigados a seguir regras de conduta e a declararem de forma expressa o interesse que representam. “É um debate a fazer”, propõe, ao antecipar resistência da parte dos grupos de pressão locais e “problemas práticos”. “A outra metade de Macau que não iria preso teria de se registar como lobista”, diz. E, por cá, o lóbi ainda não tem lóbi."
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