sábado, 23 de abril de 2016

Os macacos e a política *


"Quando nasci não havia democracia em Portugal.

O que, até ao 25 de Abril, sabia dela devia-o aos livros. Prática - nenhuma, portanto. Ouvia falar de direita e de esquerda. Lia nos jornais que isso existia "lá fora", mas pouco mais. Veio, então, o 25 de Abril e comecei a fazer uma formação política intensa (anteriormente nem sequer tivera uma daquelas honrosas prizõezitas ...) passando a conceber com alguma clareza o que eram essas "coisas" da direita e da esquerda. E da democracia também.

A primeira que me foi apresentada foi a esquerda. "Tudo" era esquerda. Logo a seguir conheci a "prima" - a extrema-esquerda (ou extrema-direita? Não percebi bem...) Estúpida, angulosa, boçal, macilenta, com caspa e dente de ouro, suja, cheirando a suor. Todavia, "em terra de cegos quem tem olho é rei" e a verdadeira extrema-esquerda, não sendo cega, viu que à sua volta tinha um país politicamente analfabeto. E como, embora não fosse inteligente, estava atenta e era servil, bastou-lhe cumprir as ordens que recebia da estranja para parecer "brilhante". Fê-lo com o rigor néscio dos falhados.

Entretanto, a esquerda que me fora apresentada no dia 1 de Maio de 1974 (lembro-me como se fosse hoje), sumira-se. Nunca mais a vi. Consta-me que não era estúpida, nem alarve, embora as más línguas já me tenham dito que tem entre os seus membros alguns contrabandistas e outra gente de baixa condição moral, com um passado pouco limpo. Mas, como digo, mal a conheci e, por isso, não me atrevo a fazer, sobre ela, juízos de qualquer espécie.

Meses depois quiseram apresentar-me a direita, mas logo se atravessou, com pé leve, a extrema-direita (ou extrema-esquerda?). Também não lhe liguei, mas julgo ter fixado os seus métodos e a maneira como se apresenta. É elegante, lustrosa, engravatada, bebe chá e "whisky" do melhor, pega na chávena com dois dedinhos, beija a mão, come bolacha "shortcake" e palitos "La Reine". Discute a marca do relógio e a velocidade dos seus carros. Joga "golf", roleta e "bridge". Embriaga-se (à noite) na "boite" e "administra" (de dia). Tem azia, ou antes, acidez no estômago. Levanta-se tarde e lê o matutino em roupão - com as torradas. É redonda, bem nutrida, cheira a "Paco Rabane", pinta o cabelo, se necessário, e tem botões de punho de ouro. Às vezes, apresenta-se descuidada no vestir. Não é tão estúpida como a extrema-esquerda, mas julga-se, apesar de tudo, "dona do Mundo". Vive rodeada de lacaios e concede, de vez em quando,
umas "regalias" aos trabalhadores. É insinuante, fala bem - sobretudo, inglês. Tem "montes de absolutamente". Janta no Tavares e almoça, à pressa, "por aí" para ter tempo de participar nas reuniões que as secretárias lhe marcam. Para ela tudo está analisado previamente, tudo já era do seu conhecimento - por isso, pode ser rápida nas decisões que toma. E decide - mal. Entretanto, os lacaios que a adulam tentam cobrir as suas deficiências - mal. E o País agoniza. E Portugal morre. Já tem gangrena nalguns pontos da parte inferior da "cintura". Que apareceram pelo facto das receitas estrangeiras da extrema-esquerda não se aplicarem à nossa constituição física e por a extrema-direita julgar que resolve os problemas do País entre duas xícaras de chá ou numa "divertida" ida para os copos.

(...)

Não me surpreenderia, todavia, que um dia viesse a acontecer entre os seus militantes, prantados frente a frente, história semelhante à daquele indivíduo que todos os dias se barbeava com a janela da casa de banho aberta defronte de um macaco que o espreitava num prédio do outro lado da rua e que, sistematicamente, o imitava com uma navalha igual à sua. Aconteceu que o sujeito se maçou e, numa manhã, pôs a navalha com a lâmina para fora, simulando golpear o pescoço com o lado não cortante. O macaco não percebeu o truque, imitou-o e - morreu. Os extremos também se emitam - como os macacos. E acabam por se anular. Esperemos que, entretanto, não nos anulem a nós também. De nada teria valido a aprendizagem acelerada que cada um procurou fazer da democracia."

* in "À Sombra da Minha Latada" de M.A. (1980)

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