sexta-feira, 20 de maio de 2016
"À Sombra da Minha Latada" (3)
Prossegue-se hoje a transcrição de algumas páginas do livro em epígrafe, não para "chover no molhado", mas para repetir ... que a gente é a mesma, ou filha da mesma, com algumas eventuais misturas de D. Afonso Henriques para cá.
Não irá satisfazer os que passam aqui pelo JARDIM para ler escândalos de sexo e/ou políticos, mas para tentar fazer alguma "pedagogia" a partir do que não deve ser ... Quiçá, com boa vontade, muito boa vontade, uma espécie de Cervantes de trazer por casa ...
Vamos a isto, publicado, em tempo oportuno, num jornal diário da época e, depois, recuperado para o livro M.A. À SOMBRA DA MINHA LATADA, já oportunamente citado, pelo menos, duas vezes.
Lá vai:
TESTEMUNHO
"O último número que "O SÉCULO" publicou, foi no dia 12 de Fevereiro de 1977. Ou, melhor: o último em que a Sociedade Nacional de Tipografia, proprietária do jornal trabalhou, praticamente, em pleno, foi 12 de Fevereiro de 1977.
De então para cá a sua actividade tem sido quase nula. E perto de oitocentos trabalhadores estão, por isso, a receber o dinheiro, não do seu trabalho, mas dos nossos impostos. É talvez a empresa portuguesa que se encontra paralisada há mais tempo, sem que se vislumbre o recomeço da sua actividade. Enquanto o Zé via pagando - e de que maneira! - os caprichos de meia dúzia a que se deve a presente situação.
Estive n' "O Século". Sei como foi. Conheço, pelo menos, a parte inicial do processo. A fundamental. Aquela em que o objectivo era a conquista dos meios de produção - de qualquer maneira. Aquela em que vozes, hoje muito "democráticas", propunham a demissão imediata de todas as chefias - que depois seriam votadas (exemplo acabado do ataque aos quadros sob a capa da democracia). Sei como foi. E, por isso, não me é nada grato escrever sobre o que vi e ouvi. Sobretudo, quando hoje sou abordado na rua por antigos colegas que me confessam nem dinheiro para transportes terem. É uma situação que me choca e revolta. Mas nada posso fazer. O que podia, tentei-o enquanto lá estive, fingindo, às vezes, não perceber os que surdamente me atacavam, ou antes, minavam a empresa, procurando derrubar todos os quadros para lhes ser mais fácil o assalto final às estruturas. Apesar de tudo, não vou, neste momento, escrever sobre os que, chamando lacaios aos outros, apareceram enfeudados a determinados partidos políticos - em nome da liberdade. Nem dos que, dizendo-se defensores dos trabalhadores, os atiraram para a ruína. Não! O que quero dizer, apenas, é que foi graças à situação de "O Século" que quase aos 40 anos, senti, pela primeira vez, a verdadeira sensação da autêntica LIBERDADE. Exactamente no instante em que saí as suas portas, depois de longo e doloroso debate interior face às provocações permanentes dos novos "defensores das classes mais desfavorecidas". Foi um momento único na minha vida. A Sociedade Nacional de Tipografia era, com efeito, um cativeiro sem grades. A nova "Pide" estava instalada. Os movimentos das pessoas eram seguidos. Os telefonemas escutados. As decisões boicotadas. Depois de muito lutar só havia, finalmente, um caminho: sair. Foi o que como eu, alguns tiveram que fazer. Em particular, ao nível dos quadros, deixando aquela casa onde ninguém sabia quem mandava mas a maior parte obedecia ao terror sombrio de perder o emprego.
O dia da minha saída de "O Século" terá sido dos mais felizes que vivi. Quando abandonei as suas instalações apetecia-me cantar e não sei mesmo se o não cheguei a fazer. Contudo, ao tomar esta decisão, não tinha nenhum emprego em vista e a família esperava o meu salário. Mas foi, mesmo assim, um momento grande. Uma data inesquecível. Que se hoje recordo, é porque, com mágoa, acabo de ouvir que a Sociedade Nacional de Tipografia ainda não tem solução. Isto é, a tese daqueles que apostaram na sua destruição continua a produzir efeitos. Pelo caminho, entretanto, já ficaram vidas e a saúde de muitos que foram enganados ou que jogaram errado. Nós, os outros que estávamos de fora e que pagamos, nada podemos fazer ... a não ser continuar a pagar. Mas em liberdade, longe das grilhetas que conduzem à ruína psicológica e material. Cristo é que dava a outra face. Os mortais como eu nem sempre são capazes de o fazer. E têm da liberdade um conceito muito próprio que os leva a considerar que "mais vale a morte do que tal sorte".
Lamento os que a idade já não ajuda e que consumiram o melhor de si a engrandecer uma casa a que se dedicaram inteiramente, mas não posso deixar de lembrar que foi a inacção da maioria que permitiu o desastre a que ainda hoje se assiste. Foi a passividade geral que levou à saída de muitos quadros; foi a ingenuidade de parte que permitiu as votações de braço no ar; foi a ânsia de uma falsa libertação que de "O Século" uma prisão sem grades.
Os que nesta altura estão fora do cárcere, mas sabem o que custa lá estar sem apoio dos que agora se debatem com dificuldades de toda a ordem, só podem dizer que, por vezes, é alto o preço da liberdade, mas que depois de se ter feito tudo para tentar conquistá-la não há nada que lhe chegue ...mesmo correndo o risco de ficar sem pão ... Glória, entretanto, aos que permaneceram na SNT sem se traírem. Se os há.
Portalegre, 9 de Junho de 1978 - Amanhã é Dia de Portugal. Sugiro a "mais ampla" amnistia para os que (se) atraiçoaram."
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