João Paulo Meneses
Nas últimas semanas apareceram na net (nomeadamente no blogue Macau
Passado) algumas imagens da estátua do governador Ferreira do Amaral, que vieram reforçar a má imagem que a generalidade da opinião pública, com interesse nesta área, tem sobre a colocação em Lisboa da referida estátua.
Essas imagens mostram a estátua emparedada por contentores de uma obra e sem visibilidade pública no jardim do Bairro da Encarnação, em Lisboa, onde se encontra desde o início deste século.
A situação foi entretanto resolvida, como as mais recentes imagens captadas pelo PONTO FINAL demonstram, mas não foi possível apurar o que levou os responsáveis a optar por tapar literalmente a frente da estátua. Os contactos feitos via e-mail para a Câmara de Lisboa ficaram sem resposta.
As obras, do metro de Lisboa, que vai passar naquele local, foram entretanto desviadas para o outro lado do jardim e apenas resta um mini-contentor numa das pontas desse espaço.
Quanto à estátua, há a registar o vandalismo de uma ‘tag’ e a deterioração da placa informativa, ali colocada no início deste século, que indica: “João Maria Ferreira do Amaral (1803-1849) Militar ilustre e Governador de Macau de 1846 a 1849. Morto, em 22 de Agosto de 1849, perto da porta do Cerco em Macau. A estátua, de autoria de Maximiliano Alves, foi inaugurada em 24 de Junho de 1940 e removida de Macau em Novembro de 1991. Representa Ferreira do Amaral defendendo-se dos seus agressores”.
A primeira ordem da China
Durante 51 anos a estátua esteve no mesmo local, tornando-se um ex-líbris da imagem do território, até pela presença, mais recente, do Hotel Lisboa – resistiu, portanto, ao “1,2,3”.
E conferindo a Ferreira do Amaral um estatuto singular, o de único governador de Macau com uma estátua em Macau. Monsenhor Manuel Teixeira dizia muitas vezes que Ferreira do Amaral fora o único que merecera uma estátua.
Mas tudo se alterou na Primavera de 1990, quando o então responsável chinês pelos assuntos de Hong Kong e Macau, Lu Ping, disse que a China gostaria que fossem removidos os símbolos ou monumentos coloniais antes do final do período de transição. A declaração, que provocou muita polémica e foi criticada pelas autoridades portuguesas, pode ser vista hoje como uma espécie de pré-transferência do exercício da soberania.
A verdade é que, pouco mais de dois anos depois (Outubro de 1992), a estátua era retirada de Macau e enviada para Lisboa. A decisão final foi do governador Rocha Vieira, que herdou o problema do seu antecessor Carlos Melancia. Este, em declarações ao PONTO FINAL em 1999, explicou que “não quis deixá-la ao ‘Deus-dará’ para provavelmente ser submetida a vexames depois de 20 de Dezembro de 1999”.
Já o seu sucessor considerou que a estátua era a evocação de “um momento histórico entre Portugal e a República Popular da China num conflito que existiu e que hoje não tem sido recordado”.
A verdade é que, no momento da retirada, a justificação foi outra: obras na zona para construção do parque de estacionamento subterrâneo (e o ‘culpado’ foi o arquitecto que ganhou o respectivo concurso e que defendeu a remoção).
Ambos os ex-governadores garantem que se esforçaram para que fosse encontrado um local digno para a estátua em Lisboa ou noutro local. Mas a verdade é que o monumento esteve, quase toda a década de 1990, encaixotado num armazém da Direcção Geral do Património, até ser escolhido o discreto jardim do Bairro da Encarnação, junto ao aeroporto de Lisboa.
Rocha Vieira chegou a confessar que tentou que o monumento ficasse no antigo Jardim Colonial, mas sem sucesso.
A escolha do Bairro da Encarnação suscitou diversas críticas (por não haver qualquer ligação a Macau ou ao contexto histórico e por ser uma zona demasiado discreta da cidade), tal como a opção de anular o elevado pedestal que existia em Macau (ver foto).
Mas a família do governador, nomeadamente os seus trinetos Augusto (investigador histórico) e Joaquim (então ministro das Obras Públicas) Ferreira do Amaral, aprovou as várias opções. Augusto chegou a dizer que se trata de “um local muito digno, onde está muito bem”. Sobre o pedestal de Macau, “não faria sentido”, tendo sido construído outro, bastante mais baixo.
Já a autora do livro “Transição de Macau para a Modernidade, 1841-1853”, Maria Teresa Lopes da Silva, considerou que a estátua ficaria melhor num museu. E o ministro Ferreira do Amaral chegou a sugerir que fosse a Marinha, a que o seu trisavô pertencia, a assumir a colocação.
O discurso censurado
A ‘maldição’ de Ferreira do Amaral não atingiu apenas a estátua. Um dos mais caricatos episódios da administração portuguesa em Macau envolve um discurso censurado, porque o seu autor fazia algumas referências ao governador morto em 1849. Foi no 10 de Junho de 1990, na ressaca das afirmações de Lu Ping. Dias Loureiro era o representante do Estado português nas cerimónias do 10 de Junho mas ficou retido em Londres e não pôde ler o discurso que preparara. O então governador Carlos Melancia censurou o texto que Dias Loureiro não pôde ler, por entender que as referências elogiosas que o ministro fazia a Ferreira do Amaral eram desadequadas. O episódio – ainda hoje recordado – teve muito impacto, porque a versão original do discurso foi conhecida e, portanto, também as alterações que o então governador entendeu fazer.
A mini-mini-estátua
Não é uma estátua, nem nada que se pareça, aliás nem passa de uma pedra, mas dizem os registos que a rocha que se encontra no jardim do templo de Lin Fung (no Iao Hon, entre um viaduto e uma agência do Banco da China) é uma referência directa ao local onde Ferreira do Amaral foi morto. A pedra, com o símbolo português de então, um brasão da monarquia, é praticamente o que resta da memória do primeiro governador português em Macau, se exceptuarmos a praça com o seu nome. A pedra foi colocada no local do ataque, uma zona que era um descampado e que ficava na estrada para as Portas do Cerco, a poucas centenas de metros. A pedra não faz qualquer referência ao sucedido nem tem qualquer outra indicação escrita, o que contribuiu para que nunca tenha sido vista como um perigo, ao mesmo tempo que é desconhecida da esmagadora maioria da população de Macau.
No cemitério dos Prazeres
O seu trineto Joaquim disse um dia que “depois de ter sacrificado a vida, aceitou postumamente ser removido de Macau”. O envio da estátua foi, aliás, a segunda viagem de Ferreira do Amaral de Macau para Lisboa. Depois de assassinado em Agosto de 1948, o seu corpo foi trasladado para o cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde ainda se encontra. Para Monsenhor Manuel Teixeira, Ferreira do Amaral foi tanto “o governador mártir” como aquele que “ocupa o lugar cimeiro da história de Macau”. Enviado de Lisboa “para fazer disto Portugal”, disse também o padre-historiador, Ferreira do Amaral obteve várias vitórias, a principal das quais ter aberto caminho ao Tratado de 1887, que reconhecia a ocupação perpétua de Macau (e que a China nunca ratificou)."
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