Elas acham os portugueses simpáticos, mas há zonas de conflitualidade, conclui uma investigação que permitiu a João Laurentino Neves obter o grau de mestre. O director do Instituto Português do Oriente (IPOR) defendeu recentemente a dissertação na Universidade Aberta. Entre as conclusões a que chegou estão algumas surpreendentes.
João Paulo Meneses
O que pensam as mulheres de Macau sobre os portugueses radicados no território?
João Laurentino Neves, presidente do Instituto Português do Oriente (IPOR), passou das interrogações aos actos e investigou as representações e estereótipos que vigoram sobre os portugueses no território, apresentando as conclusões na tese de mestrado que defendeu recentemente na Universidade Aberta.
“Kuailous ou Po Tao Ya. Imagens no feminino sobre os portugueses em Macau” é o título da dissertação do novo mestre em Relações Interculturais, um texto que se encontra disponível online para consulta.
A propósito do título, que se pode dar a interpretações dissonantes, o autor explica na introdução ao trabalho: “De modo simbólico, o cantonense, língua veicular que prevalece em Macau, regista dois termos que refletem duas representações sociais dos portugueses - Kuailous (diabos brancos) e Po Tao Ya (aquele que vem de Portugal) consagram, de facto, duas percepções diferentes. Será pertinente para a perspetivação das relações sociais envolvendo a comunidade de portugueses, no presente como no futuro, compreender as diferentes tendências existentes que os dois vocábulos traduzem do ponto de vista simbólico”.
Em nota de rodapé acrescenta ainda que “termo kuailou ou kuai-lou (diabo branco) constitui um lexema que, não designando apenas especificamente os portugueses (antes os ocidentais), os teve, porém, entre os seus principais referentes, assinalando, de forma marcada, a oposição ao tôu-sán-chai (filho da terra). É, nos bairros mais tradicionais, ainda usado pela população mais idosa”, esclarece Laurentino Neves.
O autor detalha, naturalmente, o que pretendeu com este trabalho: “Analisar representações sociais e traços de estereotipicidade dos portugueses construídos por mulheres chinesas de Macau”. A partir deste objectivo geral, seria possível, nomeadamente, “identificar situações de contacto e de distância intergrupal”, “apreender atitudes e preconceitos face aos portugueses” ou “explorar perspetivas de futuro para a língua portuguesa em Macau, como factor de integração dos portugueses no território”.
Imagens positivas …
De uma forma muito genérica, “o estudo conclui que as representações sobre os portugueses são, no essencial, de pendor positivo e exibem uma abertura à proximidade social e à participação desta comunidade nas dinâmicas sociais da Região Administrativa Especial de Macau. Mas assinala também áreas de potencial maior conflitualidade na defesa, pelo endogrupo - as 175 mulheres de etnia chinesa, residentes em Macau, entrevistadas por João Laurentino Neves – de áreas vitais de afirmação dessa nova ordem social pós- transferência”. Noutro capítulo, o agora mestre em Relações Interculturais escreve que “efetivamente, as imagens sobre os portugueses são globalmente positivas, no sentido em que as marcas estereotípicas identificadas remetem para traços positivamente valorizados quer na cultura do grupo próprio das inquiridas quer, de facto, na cultura do exogrupo [os portugueses de Macau]”.
O estudo refere em concreto a “predisposição significativamente elevada manifestada pelas inquiridas para a proximidade social com portugueses”.
Na parte em que discute os resultados, o autor destaca por exemplo as “competências sociais dos portugueses, de modo particular a sua simpatia, e a forma como abordam a vida (vista como despreocupada e divertida) mereceram uma significativa valorização positiva pelo endogrupo”, sendo que “os dados apontam no sentido da existência de uma considerável predisposição para atitudes de proximidade social”, ainda que “a avaliar pelos dados ao nível do contacto efetivo, a prática social parece, no entanto, estar ainda longe desta predisposição de princípio que a recolha efetuada com recurso à escala de proximidade social parece sugerir”.
Ainda assim ....
Em determinadas áreas, contudo, “as imagens construídas perdem a positividade e a predisposição para a proximidade recua face a outras”. Uma delas é no “Trabalho”: “Não apenas os estereótipos sobre os portugueses são, nesse campo específico, marcados pela negatividade, como diminui a predisposição para a proximidade quando as relações nesse campo envolvem uma perda de poder do endogrupo, definido através de relações hierárquicas favoráveis a portugueses”. Daí o autor falar em espaço de “potencial conflito social”, citando outro autor. João Laurentino Neves explica mais à frente: “Se é bem aceite a ideia de ter colegas portugueses não o é, como vimos, a de ter chefes portugueses, cuja média do nível de concordância se situa mesmo a um nível que pode ser considerado não positivo”.
Outra área, descrita na dissertação como de “recuo”, verificou-se ao nível das relações interindividuais, “que impliquem a abertura a portugueses de alguns espaços socialmente mais simbólicos (o casamento, o namoro), denotando a intenção de que eles se mantenham preferencialmente no espaço de controlo do endogrupo”.
Chegado a este ponto das conclusões, o autor questiona: “Que espaço entende, pois, o grupo de referência dever existir para uma presença de portugueses no novo contexto político-jurídico de Macau e qual a qualidade dessa presença?”.
A resposta não parece ser animadora: “Apesar do reconhecimento conferido à importância que a presença portuguesa até 1999 assume para o ambiente social, económico e cultural atual da RAEM, não é particularmente significativa a concordância manifestada pelo grupo de referência relativamente à concessão de autorizações de residência e de trabalho aos portugueses na RAEM na atualidade”, defende o autor. “Por outro lado, a qualidade dessa presença parece ter igualmente perdido impacto no processo de construção da RAEM. O reconhecimento que é conferido à importância dos portugueses até 1999 não é acompanhado por um reconhecimento significativo do seu papel atual, se se tomar como referência a sua pertinência relativa face a outras comunidades. A representação expressa de que os portugueses não se distinguem, em termos de importância, face a outras comunidades migrantes, apesar desse capital acumulado no passado, parece também apontar para uma necessidade de preservação, por parte do endogrupo, de uma nova ordem social que chame a si a liderança dos processos e diminua o espaço de ação de outros”.
Um dado mais: as mulheres de etnia chinesa inquiridas pelo investigador entendem que “os portugueses vêem tendencialmente os chineses como inferiores” o que terá “certamente implicações ao nível da referida qualidade da participação reservada aos portugueses no desenvolvimento da RAEM”.
A importância da língua portuguesa
É aqui que entra a relevância da língua portuguesa, quando se analisam os “vestígios da presença portuguesa que concorrem para a singularização de Macau no contexto da RPC, tanto uma necessidade (reconhecida na Lei Básica da RAEM), como uma oportunidade”.
Nas conclusões da dissertação, João Laurentino Neves dá conta de uma certa ambiguidade face à prevalência e à importância do idioma de Camões: “(…) Se o seu estatuto como língua oficial parece recolher o consenso entre as inquiridas, o mesmo não se regista relativamente à obrigatoriedade do seu ensino curricular. A decisão deve, assim, do seu ponto de vista, permanecer sob sua opção individual, não se tratando, portanto, de um conteúdo identitário”, assinala o director do IPOR. Neves acrescenta que “o interesse significativo (de que as próprias inquiridas são exemplo) em torno da aprendizagem de uma língua que, apesar de ter acompanhado largos anos de administração portuguesa, pouco foi difundido entre a comunidade chinesa parece, assim, assentar numa representação essencialmente instrumental – a língua portuguesa está associada a uma perspetiva de mobilidade profissional (e social) que decorre, em larga medida, de opções estratégicas conjunturais da política da RPC. Por si só, este interesse pelo Português poderá, por este motivo, não alavancar mais e melhores contactos e relações intergrupais, nem constituir oportunidade adicional para portugueses”.
O PONTO FINAL contactou o director do IPOR com o objectivo de avaliar a disponibilidade para abordar algumas das questões suscitadas pela dissertação, mas João Laurentino Neves defendeu que a própria tese fala por si: “Pelas suas características, a reflexão efetuada tem um contexto e um alcance próprios. Apenas me parece oportuno salientar que reforça a importância da inclusão e da promoção de competências interculturais em todas as intervenções de carácter formativo, onde se inclui o ensino de línguas.”
Como foi feito o estudo?
A partir da pergunta-base “Exibem as imagens dos portugueses construídas por mulheres chinesas de Macau traços favoráveis ao desenvolvimento de relações intergrupais positivas com os portugueses, abrindo espaço à participação destes na construção da RAEM?”, João Laurentino Neves juntou “175 mulheres de nacionalidade chinesa residentes em Macau, que frequenta[va]m, no momento da recolha, formações em Língua Portuguesa oferecidas pelo Instituto Português do Oriente, a cujo acesso tínhamos facilitado”.
Houve uma amostra inicial de 50 mulheres “composta por 30 estudantes, 12 funcionárias públicas e 8 quadros de empresas locais, com habilitações que se situam entre o ensino secundário (22) e o ensino superior (28), de quatro faixas etárias pré-definidas: menos de 20 anos (20), 21- 30 anos (14), 31-40 (12) e 41-50 anos (4)”.
Num segundo momento, “– o inquérito principal – participaram as 175 mulheres que compunham a amostra, pertencentes aos mesmos grupos etários de -20 anos (53), 21-30 anos (83), 31-40 (34) e 41-50 anos (5). São naturais de Macau 148 das participantes no estudo, enquanto 26 (14,86 por cento) nasceram na China continental e 1 (0,57 por cento), tendo nacionalidade chinesa, nasceu na Birmânia. Os dados recolhidos referentes à sua ocupação situam 38,29 por cento como estudantes - 22,29 por cento dos quais no ensino secundário (39) e 16,0 por cento no ensino superior (28) - sendo 46,86 por cento (82) funcionários da administração pública da RAEM, 13,71 por cento (24) trabalhadores por conta de outrem em empresas e 1,14, por cento (2) trabalhadoras por contra própria”.
O autor explica ainda que se socorreu do “acompanhamento por parte de um tradutor no processo de construção dos instrumentos de recolha e no tratamento da informação recolhida (nas questões abertas e semiabertas) e que recorreu a três inquiridores de língua materna chinesa, que conduziram a aplicação dos instrumentos de recolha, explicitando-os aos inquiridos. Por fim, Neves privilegiou a utilização do chinês tradicional nos caracteres chineses usados nos instrumentos de recolha distribuídos”.
O novo mestre em relações interculturais não deixa que lembrar que “registando as limitações que a seleção da técnica de amostragem operada trouxe ao estudo em termos da sua representatividade, assim não assegurada, fez o mesmo, no entanto, apelo a uma amostragem não probabilística por conveniência assente, essencialmente, em razões operacionais”.
A tese de João Laurentino Neves sobre as imagem dos portugueses radicados no território e as relações interculturais entre as duas comunidades historicamente mais relevantes da RAEM pode ser acedida na íntegra em https://repositorioaberto.uab. |
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