O padre Benjamim Videira Pires faleceu em 10 de Janeiro de 1999, fez agora anos, portanto. Permita-se-me que o lembre com muita saudade. Assim de repente, por três razões pessoalmente significativas:
1ª A cordialidade com que me recebeu em Macau, naquela que era, depois de Goa, a segunda "etapa" da que terá sido a única tentativa, até 1980, de aproximação directa às maiores comunidades portuguesas no mundo;
2ª A pronta colaboração que, a pedido, deu à edição de O DIA, justamente dedicada àquele ex-território português no Oriente (está datada de 4 de Março de 1980). Comemorava-se o quadricentenário da morte de Camões e... (ler adiante apontamento escrito e então publicado em exclusivo);
3ª A garrafa de vinho do Porto que me ofereceu, saudando com entusiasmo a iniciativa.
"No quadricentenário da morte do Épico
Esteve ou não Camões em Macau?
Padre Benjamim Videira Pires, S.J.
A maioria dos factos da vida de Luís Vaz de Camões apresentam-no-los os seus biógrafos somente como prováveis. Os acontecimentos mais documentados são os que directamente indica ou sugere o próprio Poeta na sua obra.
A estada do Épico em Macau não foge a esta regra, como vamos verificar.
A tradição histórica, que se originou e correu mundo logo a partir da publicação da sua Lírica, afirma unanimemente que:
ele residiu, aqui, onde desempenhou um cargo de provedor de defuntos e ausentes;
em Macau teria composto, ao menos, parte de Os Lusíadas;
neste território, amou a chinesa Dinamene, que perdeu no naufrágio da foz do Mekong, juntamente com um carregamento de "Quanto gado vacum pastava e tinha./ De que grandes soldadas esperava";
e, daqui, regressou a Goa, para responder à "execução" do "injusto mando", provavelmente do vice-rei.
Os graus de certeza humana sobre qualquer ocorrência histórica são diversos (a máxima probabilidade, a certeza moral, a conclusão indutiva, a prova metafísica, a solução matemática, a evidência, a intuição, etc.). De determinadas convergências, fortemente prováveis - principalmente na impossibilidade prática de elas não serem contraditadas por razões positivas -, nasce a certeza do género da que chamamos "máxima probabilidade".
Ora não há argumentos seguros que abalem ou destruam a referida tradição histórica, reduzidas as linhas essenciais que apontamos.
Objectar, por exemplo, que para compor nos Penedos de Patane, cerca de 1556, Os Lusíadas, Camões teria necessidade de consultar uma boa biblioteca, faz rir... Antes de mais, o grande humanista levava, no espírito, desde Portugal o saber literário e científico do seu tempo, acrescido do outro "de experiência feito", que, no Oriente, ao contacto com a tragédia, adquiriu e fermentou o primeiro. Depois, ninguém assevera que ele teria sido dado, aqui, a última demão às instâncias da epopeia nacional.
O canto X (a descrição da ilha dos Amores, que alguns pretendem seja Ibo, ao largo da foz do Rovuma) bem como a dedicatória a D. Sebastião foram definitivamente redigidos mais tarde. Não foi só a Summa Oriental, de Tomé Pires, escrita em Malaca, uns bons trintas anos antes de 1556?
Em suma, para compor poemas bastam a solidão, a liberdade e sobretudo a inspiração. Esta nunca abandonou o génio de Camões, que escreveu as suas mais altas líricas no cabo Guardafui ("Junto dum seco, duro e estéril monte") e nas margens pantanosas do Mekong, após o citado naufrágio ("Sobolos rios que vão").
Por outro lado, a respeito do ofício de provedor de defuntos e ausentes, o capitão-mor da viagem comercial do Japão, Leonel de Sousa, que negociou o "assentamento" com o aitão chinês do Sul da China, testemunha, em carta de 15 de Janeiro de 1556, que esse cargo já existia nessa data, queixando-se ao príncipe D. Luís, irmão de D. João III, de que não lhe tivesse sido atribuído, pois estava anexo à dita capitania-mor. Quem o exerceu?
Pelas águas de Macau, desde 1613, navegavam em barda os navios portugueses e em 1555 temos provas irrefutáveis de que aqui estiveram Fernão Mendes Pinto, o padre-mestre Belchior Nunes Barreto e outros. Um fidalgo lusitano ( possivelmente Diogo Pereira) atesta, em carta de 1564, que havia oito anos (portanto em 1556) se travara, na rada de Macau (afirmação duas vezes repetida), donde ele data a missiva, um combate em que tinham entrado quinhentos portugueses, tradicionalmente contra os piratas wako de Chang Si-Lau. Excluído este último inciso, este documento seguro não se pode ignorar, nem muito menos negar, honestamente.
O argumento da toponímia, "Penedos de Camões", é também importante, porque, antes do liberalismo e do culto da personalidade por ele introduzido, os nomes das ruas e locais davam-se às pessoas mais influentes ou famosas que aí tivessem vivido. O sítio ameno e silencioso dos penedos foi adquirido pelos primeiros jesuítas pouco depois de 1565, como refere em suas longas cartas o padre Organtino. O inventário geral das propriedades dos Jesuítas, feito à raiz da expulsão e revelado primeiramente por Teófilo Braga, é o somatório final de muitas parcelas de bens imóveis que se foram adquirindo pelo tempo fora. À data da morte de Camões, ou logo que o Poeta principiou a ganhar fama no país, calculo que é natural fossem designados por "Penedos de Camões" os primitivamente chamados "Penedos de Patane", nos inventários parciais da Companhia de Macau.
Para mim, pessoalmente, porém, como insinuei ao princípio, os documentos mais ponderosos sobre a estada de Luís Vaz de Camões na incipiente colónia são os testemunhos do mesmo Poeta, nomeadamente a estância 128 do canto X de Os Lusíadas e os sonetos 13, 17, 75, 109, 115, 172 e 264 do designado "Ciclo Dinamene" (Obras de Luís de Camões, 1970, Lello & Irmão, Porto).
O Poeta vê-se forçado, pela execução do "injusto mando" do vice-rei (?), a quem fora denunciado de ter exorbitado do seu cargo (de provedor de defuntos e ausentes?), a regressar, desde Macau e Lampacau, para Malaca, onde esperaria vender a carregação de "gado vacum" (soneto 109), mercê das influências do capitão D. Leonis Pereira, a quem Camões dedicou uma elegia e um soneto.
Analise-se gramaticalmente a referida estância 128 e concluir-se-á que só desde Macau Camões podia ter vindo com a Dinamane e as vacas ou "bois de água" (búfalos).
Portanto, se a tradição é unânime e remonta tão longe, e, por outra parte, nenhuma prova mais recente a contraria realmente, nem, por fim, se poderá jamais obter maior certeza neste assunto, dado o embrião de vida municipal existente e a falta de registos em Macau, até várias décadas mais tarde, podemos afirmar, sem perigo de errar ou ser contraditados por fontes mais claras, que Luís Vaz de Camões esteve em Macau, aqui se dedicou à tarefa essencial da sua vida - a poesia épica e lírica -, amou a rapariga chinesa Dinamene, que morreu afogada, quando ele escapou perigosamente do arquipélago dos Parcéis (Nam Sha), a sudeste de Hainão, e naufragou na foz do rio Mekong.
Exame fenomenológico ao dualismo animus anima dos sonetos do "Ciclo Dinamane", com a predominância de determinados adjectivos, como "gentil", "sereno", etc, levar-nos-ia demasiado longe.
Em resumo, diremos que a beldade que chora e o comprometeu amorosamente para sempre seria, com a máxima probabilidade, uma chinesa diversa totalmente da "Bárbara cativa".
Macau, 4 de Março de 1980.
* in obra na imagem
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