quarta-feira, 21 de março de 2012
Canteiro de palavras XL - O Rosa
Não sei se Rosa (Mendes) é flor que se cheire. O que já percebi é que tem picos ... Mas tem uma prosa que, desde que a ouvi na Culturgest, em Lisboa, passei a gostar. Tanto que a vou pôr no meu Canteiro. Embora não saiba se se vai dar bem no meio de tanta gente ...No meio desta selva.
in Baía dos Tigres, de Pedro Rosa Mendes
"(...) Andar de dia. Andar de noite. Comer fuba ou não comer nada. Poupar a última lata. Ferver chá colhido em arbustos. Cozinhar em panelas negras na terra lavrada pelos pneus. Comer a última lata. Comer à mão em pratos de esmalte esboroado. Imaginar água fresca. Salivar línguas de sal. Quebrar de frio uma hora depois da Lua. Abafar de calor uma hora depois do Sol.
Sonhar com uma cama.
Acordar com susto.
Adormecer com susto.
Desprezar as lágrimas.
Evitar os cães.
Defecar à frente dos outros. Tomar banho nos rios, nadar na sesta dos crocodilos, fugir das cobras, secar o corpo com as mãos, colher os arrepios por fora dos ossos, vestir a pele de roupa imunda. Vomitar o próprio cheiro. Dormir ao relento, dormir em alerta, em trânsito, em casa abandonadas, em colchões de palha e piolhos, em cobertores com buracos e sarna. Escutar o vento debaixo do divã. Ouvir as folhas que se riem quando arranham o cimento que não se levanta do chão.
"Perigo Minas." Não tocar em nada, pisar na pegada, andar para trás rebobinando o filme dos passos, os mesmos passos, exactamente, ou ...
Cruzámo-nos ontem com duas palhotas. Até ao momento, ninguém mais passou pela nossa imobilidade. Localização possível: situam-se entre o rio e a sede dos bois. É esse o sítio. Não vem no mapa. Nós tão-pouco. Havia uma mãe e um filho. O filho não tinha cara. Em bebé, quando ambos dormiam um noite junto à fogueira - único recurso para manter as feras ao largo dos homens -, o filho virou-se sobre as chamas. O fogo lambeu-lhe as feições com a violência do ácido.
Acho que ele me olhou atrás da árvore. Não tenho a certeza se estava virado para mim. Difícil: a criança não tem cabelo, tem uma casca uniforme e as pessoas, com as feras, impiram-lhe pânico. Ele correu de mim.
A savana fugindo à volta.
Vamos chegar. É já ali. Quando for, não importará mais.
O rio roubando-me os lugares na sola dos pés.
Mas é já ali.
A selva à solta por dentro."
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