in Sermão de Santo António aos peixes, do padre António Vieira
"(...) Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não; não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os tapuias se comem uns aos outros; muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas? Vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens que hão-de comer, e como se hão-de comer.
Morreu algum deles: vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores, comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador, que lhe tirou o sangue, come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lançol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que cantando o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra."
Sem comentários:
Enviar um comentário