sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O limpa-palavras numa tarde de poesia na CERCI

Dificil é o ambiente criado na Comunidade de Leitores organizada, na Culturgest,  pela Helena Vasconcelos, não se revestir de um elevado nível de saberes e de análise, em particular, em relação às obras literárias previamente sugeridas. O grupo que, em regra, se forma (às vezes, também amigo de longa data da animadora. O que não é defeito ...), é, em regra, culturalmente diverso, o que só beneficia a troca de pontos de vistas, quase debate. Toda a gente fala, bota fundadas opiniões o que, não raro, gera animadas e soltas trocas de pontos de vista. E é pretexto para uma ou outra aproximação ou reencontro pessoal no à-vontade gerado. Tal assim é que um dia ...

... um dia, participante que também era, pedi às/aos companheiras/os de Comunidade para me ajudarem a escolher textos que pudessem ser lidos numa comunidade diferente, numa comunidade de deficientes intelectuais. No caso, da CERCI de Lisboa - Espaço da Luz. (Espaço da Luz é uma dependência cerciana localizada, em Lisboa, sim, mas na freguesia de Carnide). Quinze dias depois (intervalo entre Encontros), registo-o hoje aqui "publicamente", entre outras sugestões, alguém, amável, lembrou um poema de Álvaro Magalhães. Foi um êxito! Lido à "meninada" cerciana, foi amplamente policopiado e chegou mesmo às respectivas famílias. 

Lembro-o, por isso, neste espaço (é capaz de já andar por aí, não sei...), a quem, eventualmente, precise de limpar palavras ...

É o LIMPA-PALAVRAS, justamente:

Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra, 
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.

Sem comentários:

Enviar um comentário