Edição de 1980 |
"Abril em Portugal. Mais do que uma canção: uma revolução. Com flores, letra e música. Marchas e cravos. Espingardas para decorar e flores para atirar. Sem ovos podres. Só batalha de flores. De cravos. Eram vermelhos sem ninguém saber porquê. Nem importava. Há pormenores que não se discutem em dias festivos. O povo veio para a rua e depois de ter sido madrugada hesitante, foi manhã de festa sucessivamente mais rija até ao 1º de Maio, em que cantou, bailou, comeu e bebeu à grande. No dia seguinte, foi trabalhar e depois ainda trabalhou. A seguir, desistiu enquanto não lhe deram mais dinheiro, enquanto não repartiram consigo parte da riqueza acumulada.
Repartiram do que havia e do que deveria haver.
Dançara na rua. Dançava agora na "boite". De dia reclamava - à noite dançava. E de tanto dançar ficou tonto. E começou a perturbar-se. É agora novo-rico. Ou melhor: foi novo-rico. De momento, já receia ser de novo pobre. Tinha pouco dinheiro, teve algum dinheiro, hoje paga por letras. Ao merceeiro ainda não. Mas quase. Entretanto, passa cheques sem cobertura. Inadvertidamente. Contudo, algumas lojas fazem questão em só lhos aceitarem visados pelo banco.
Dançou para festejar. Dançou para gozar. Entonteceu a dançar. Dança para esquecer. Liamba-se para sonhar. Sonha para se divertir. E a sonhar vive. Mas sem notas nem moedas.
Tem automóvel à porta e a letra no protesto. Tudo foram cravos. Quase tudo são cravas. Deixou-se envolver na primeira. Envolveu-se na segunda.
Portugal em Abril foi, antes de mais, uma canção: letra e música. Hoje é só letra. Portugal é uma letra. Todos os dias protestada.
Foi cravo. Alguns querem-no crava. Estamos, a pouco e pouco, em plena "revolução dos cravas" em que a terra já nem sempre é para quem a trabalha, mas para quem a baralha.
A música ... foi-se. Perderam-se as notas."
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