O historiador Jason Wordie, convidado do Rota das Letras aceitou o convite do PONTO FINAL para um passeio pelo centro da cidade.
Inês Santinhos Gonçalves
São apenas aparentes as mudanças de Macau. Apesar das transformações na fisionomia, permanece como um local de refúgio, que vive de negócios “menos agradáveis” e onde os empresários dão dinheiro às associações de beneficência para limpar a sua imagem. A leitura é de Jason Wordie, historiador e autor do livro “Macau – People and places, past and present”.
As 485 páginas do livro lançado no ano passado foram resultado de seis anos de pesquisa, seis anos em que Wordie palmilhou as ruas da cidade uma a uma. Mas o seu interesse por Macau começou muito antes. “Aquilo que sempre gostei em Macau é que, mesmo em mais de 20 anos de exploração, viramos numa esquina que achamos que conhecemos e encontramos algo completamente diferente”, conta.
Estamos na Travessa dos Becos, a escassos metros da Igreja de São Domingos e do busílis do Leal Senado, uma zona da cidade que ainda preserva muita da antiga vida – mais antiga até do que a maioria dos habitantes imagina. “A poucos metros de uma igreja que aqui está há centenas de anos, encontramos algo que nem sequer é tradicional chinês, é pré-chinês.” O primeiro beco à esquerda, um beco na Travessa dos Becos, revela um pequeno templo, à primeira vista igual a tantos outros que polvilham a cidade de vermelho e incenso. Mas no lugar de um deus, uma pedra vermelha e arredondada. “No sul da China, até há 700 anos, a maioria das pessoas não era de etnia chinesa. Estas pessoas deixaram legados religiosos, normalmente relacionados com fertilidade”, explica Wordie. Estes símbolos da terra foram trazidos de vilas remotas e continuaram a ser utilizados, mesmo que o seu significado se tenha alterado. “É a mesma coisa com o vermelho nas paredes, que é uma cor de fertilidade”, acrescenta.
No segundo beco da travessa, um segundo templo comunitário de reduzidas dimensões com mais um segredo escondido. Por cima dos caracteres dourados sobre o fundo vermelho, um desenho, à partida abstracto. Um olhar atento descortina uma imagem familiar: “É um morcego. Encontram-se muitos morcegos, porque em cantonês a palavra [pin fok] tem um som semelhante ao de sorte celestial [tin fok]. Numa sociedade pré-literada usavam-se estes símbolos”.
Passando pela velha tipografia Tin Chan, ainda em funcionamento, vamos desembocar na Rua Camilo Pessanha. Foi aqui que começou a actividade bancária, com o funcionamento da loja de penhores, onde também se avista um morcego pintado na fachada para atrair a boa sorte.
Mesmo ao lado, a associação de beneficência Tung Si Tong. “Como havia muito pouco apoio social em Macau, estas associações de beneficência eram muito importantes”, comenta Wordie. Tinham duas funções: “Uma era ajudar as pessoas, outra era ajudar o tipo de empresários que havia em Macau, ligados aos casinos, à droga, aos escravos, que podiam doar dinheiro a estas organizações e dizer ‘sou tão bonzinho’”. Esta é uma das situações que se mantém até hoje, com organizações como a Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu.
A tradição continua a ser o que era para outros aspectos da vida da cidade. Macau permanece como local de refúgio, mesmo que os motivos de fuga sejam diferentes. “[Acolheu] pessoas que escaparam da Inquisição, pessoas que fugiram de mudanças políticas, muitos refugiados do tempo de Salazar. E agora temos pessoas a fugir da crise económica”, evidencia. O poeta Camilo Pessanha, que deu o nome a esta rua, foi um dos que chegou fugido de Portugal e que, apesar de proclamar o seu ódio à cidade, por cá ficou o resto dos seus dias. “Isso era muito típico dos exilados que vinham para Macau. Não escolhiam vir para cá mas ficavam e construíam aqui a sua casa”, aponta Wordie.
Todos estes factores levam o historiador a concluir que Macau permanece quase imutável na sua essência: “Macau continua a ganhar a vida com coisas menos agradáveis, os souvenirs mudaram mas continua a haver um comércio de souvenirs. Os empresários dão dinheiro à Tung Si Tong como faziam no século XIX. São o mesmo tipo de pessoas a fazer as mesmas coisas. A forma física mudou mas a vida é a mesma”.
Surpresas e naves espaciais
Durante o trabalho de pesquisa para “Macau – People and places, past and present”, Wordie encontrou várias surpresas. “Fiquei surpreendido de descobrir, por exemplo, que se podia comprar heroína nas farmácias até aos anos 1950”, conta. “Toda a cidade de Macau é uma surpresa, há sempre alguma coisa nova, alguma coisa inesperada”, avalia.
Cortando na Rua das Estalagens, onde fica a mais antiga loja de uniformes escolares e a antiga farmácia de Sun Yat-sen, Wordie chama a atenção para um edifício que parece “uma nave espacial”. “As pessoas pensam que em Macau é tudo barroco tropical, mas há muitos edifícios assim, dos anos 1920, 1930, 1940, de arte déco, arte moderna, bauhaus”, explica.
Logo a seguir, na Rua dos Ervanários, Wordie revela mais um segredo. O historiador aponta para o chão: “Gosto muito da calçada aqui, porque é uma coisa portuguesa mas o desenho é chinês”. Trata-se de uma moeda chinesa, com um buraco no meio. “É um desenho que se vê em muitos edifícios antigos por exemplos nos ralos para a água. A palavra soy (água) está associada a dinheiro. Se temos água a passar por dinheiro, o dinheiro não se perde. Encontram-se este tipo de símbolos por toda a cidade”, explica.
Mais à frente, Wordie leva-nos à loja de produtos de coco, que além do fruto vende gelados artesanais. À vista estão muitos cocos pintados com caracteres vermelhos – são habitualmente uma peça de decoração nos casamentos. “O carácter significa dupla felicidade. Além disso, a palavra cantonesa para coco é ‘yezi’, que tem o mesmo som de ‘avôs e netos’. Tem tudo que ver com sons semelhantes e associações felizes”, explica o historiador.
Livros futuros
Jason Wordie quer continuar a escrever sobre Macau. “Estou interessando nalguns aspectos de Macau durante a guerra. Em algumas ligações entre Macau e a China nos anos 1950, quando Macau levou material estratégico para o Continente, petróleo, fármacos. Macau continuou a fazer o mesmo de maneira diferente”, conta.
Apesar de visitar o território com regularidade e já ter cá tido uma casa, o historiador nunca colocou a hipótese de viver em Macau. Gosta de dar continuidade à história e sentir a cidade como um refúgio. Espera poder voltar e continuar a escrever sobre Macau. “Sou sempre muito feliz quando estou aqui.”
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