O mestre Eddie Murphy é um dos embaixadores da cultura brasileira e da língua portuguesa na China, onde vive há mais de 10 anos a divulgar a arte da capoeira.
Cláudia Aranda
A alegria e o jeito para contar anedotas está na origem da alcunha de Edilson Almeida, ou seja, do mestre de capoeira Eddie Murphy, 47 anos, 12 dos quais vividos na China.
O professor de capoeira, que adoptou o nome do comediante norte-americano, é um dos três mestres do Grupo Axe Capoeira, que está presente em 37 países e regiões e reúne 12 mil praticantes. Eddie foi o precursor desta prática desportiva na China, que tem ajudado a divulgar a cultura brasileira e a língua portuguesa em todo o mundo.
Iniciou o seu trabalho na Ásia há mais de 10 anos. Primeiro em Hong Kong, depois em Cantão, Donghuam, Shenzhen e, nos últimos cinco anos, em Macau, onde vive desde 2009.
No próximo fim-de-semana vai ser em português que atletas de diversos países vão comunicar durante o II Encontro Internacional Cultural de Capoeira, no qual cerca de 80 crianças de Macau vão ser graduadas, na presença de mestres de capoeira e professores do Brasil, Canadá, Malásia, Singapura, Indonésia, Filipinas, Rússia, incluindo do mestre Barrão, fundador do Grupo Axe Capoeira.
Nas fotos, junto com o mestre Eddie Murphy estão duas atletas do Grupo Axe Capoeira da Rússia, Ksenia Finoguenova (alcunha Gazela) e Eugenia Ushakova (alcunha Formiga). Do Brasil veio o graduado Rudolfo Calfa (alcunha Titã), que participou no primeiro encontro de capoeira na China, realizado em 2006.
- Qual é a razão do sucesso da capoeira?
Eddie Murphy – O maior sucesso da capoeira na China é a alegria. Os chineses não são tristes, mas são um pouco fechados, e a capoeira ajuda a que se abram mais, se relacionem mais, e como a capoeira está em 150 países, aí é uma outra janela que os asiáticos têm para estarem em contacto com o mundo. O sucesso da capoeira na China é porque é uma disciplina bem disposta, nada imposta. Existe a hierarquia, mas é bem disposta.
- O que há de comum entre a capoeira e as práticas desportivas chinesas?
E.M. – O Kung Fu, o Taishi, na capoeira também temos essa concentração, e temos a música. A capoeira é uma luta disfarçada em dança, os escravos tiveram que disfarçar a luta em dança, para não serem reprimidos. Então existe essa concentração, que tem tudo a ver com o Kung Fu, que é a arte marcial da China. Por aí as artes se identificam.
- Como é que o mestre foi recebido na China há mais de 10 anos?
E.M. – Com muito respeito.Eu já era mestre quando fui para a China, eles por terem o histórico das artes marciais, do mestre, do professor, do aluno, a hierarquia, mesmo sem entenderem mestre do quê eles me respeitavam e assim devagarzinho uns assistiam [aos shows de capoeira], outros entravam, começavam a trazer os amigos. Para mim [a China] foi um choque, a língua, a comida, a escrita, são totalmente diferentes. Mas, a recepção foi boa. A base do sucesso da capoeira na China é o respeito. Eu venho para outro país, tenho que respeitar a cultura desse país, para poder mostrar a minha cultura. O sucesso é esse, sempre respeitei, em todos os países por onde passei, e, a partir daí, as pessoas abrem as portas.
- Existe hierarquia na capoeira? Como é que funciona?
E.M. – Muito. Na capoeira se você é um bom aluno um dia vai ser um bom mestre, tem de aprender para poder ensinar, tem de ouvir para um dia poder falar. São regras básicas que temos na capoeira e a hierarquia é muito forte, em todos os sentidos, o mestre dentro da capoeira é a figura maior, é ele quem comanda a roda, que dá as directrizes.
- A capoeira é uma dança ou é uma luta?
E.M. – A capoeira é como a vida. Quando você acorda de manhã e abre a sua porta não sabe o que vai encontrar lá fora. Quando você vai jogar com o capoeirista você aperta a mão dele, olha no olho dele, às vezes é uma pessoa que você nunca viu na vida, como vai acontecer agora no encontro. Você tem de apertar a mão e sair para jogar, aí você tem que estar preparado, para sorrir, para lutar de verdade, para fazer uma brincadeira, uma acrobacia. A roda da capoeira é a roda da vida, você não sabe o que vai acontecer. Essa magia de não saber o que vai acontecer, de ter de estar preparado para o que der e vier é o que encanta, é “challenging”, é o desafio. A roda da capoeira é isso. Vou jogar com você e não contra você. Pode ser uma luta. Depende dos dois atletas. Se eu não quiser lutar, vou te dar a mão e você vai procurar outro que quer lutar. A capoeira é luta, é dança, é arte, é teatro, é todas essas coisas envolvidas numa arte só. É isso que faz a diferença da capoeira com outras artes marciais. Se hoje jogo com alguém e levo certa vantagem o capoeirista que não levou vantagem vai encarar isso como incentivo para treinar mais, somos movidos pelo desafio. Não existe o vencedor e o perdedor, é um jogo, o jogo não tem fim. Você usa a imaginação, a criatividade, a malícia.
- Porque escolheu fazer capoeira?
E.M. – Nasci de seis meses e meio, prematuro, era fraquinho, aos nove anos comecei a fazer capoeira, porque me apaixonei. As outras lutas, karaté, kung fu, taekwondo são artes que você tem que bloquear o golpe com o corpo. Eu com o meu bracinho magrinho, como é que ia bloquear? Quando vi a capoeira, que já tinha a malandragem, no bom sentido, se alguém chutar você, não tem que bloquear, você pode se esquivar, e a sua defesa é um ataque. Então, na capoeira você usa muito mais a mente do que o corpo, a capoeira foi uma luta criada para o mais fraco vencer o mais forte, essa é a base (...). Na altura, vivia em São Paulo, na periferia. Tinha uma academia perto, só que não tinha condição de pagar. Um dia a minha irmã começou a namorar e o namorado dela era capoeirista, aí eu disse, “se você quer namorar com minha irmã vai ter que me ensinar capoeira”. É o meu mestre até hoje em dia, é a pessoa que me ensinou, o carácter que tenho hoje foi ele que me passou. Com quatro anos perdi minha mãe, com 11 anos perdi o meu pai, a capoeira e o meu mestre me adoptaram, eles me ensinaram tudo da vida. Na zona leste de São Paulo, a percentagem de você ir para o lado errado é muito grande. A capoeira até hoje é uma ferramenta que tira as crianças da marginalidade. Eu sou um desses da zona leste. Sempre que vou ao Brasil, volto lá, as pessoas não acreditam que eu morava ali, eu acreditei em mim, acreditei em quem acreditou em mim, e digo: “vocês têm que acreditar em vocês, se eu consegui fazer diferente vocês também vão conseguir”. Fico contente por hoje ser um exemplo, quero dar essa continuidade para que as pessoas acreditem no seu potencial e possam ter uma vida melhor e diferente.
- Uma das atletas russas dizia que a capoeira para ela é também a música, a língua. Porquê?
E.M. – O estrangeiro assimila mais o que é difícil para ele, é como um desafio, aprender a língua, entender mais a cultura, na capoeira não tem como você não aprender a língua. Pelo menos dentro do nosso grupo Axe Capoeira, as meninas [as atletas russas] vão fazer teste para uma “Corda” já graduada [sistema de graduação na capoeira] então elas têm que falar português. Acredito que o ser humano é movido pelo desafio, de nascer, de andar de gatas, caminhar, correr, voar. Na capoeira temos todos esses desafios, você começa devagar, daqui a pouco você está voando, está fazendo um salto, cai, se machuca, volta para desafiar outra vez, tem o incentivo do grupo, do professor que não deixa a pessoa desistir e isso a pessoa usa na sua vida. A capoeira é uma filosofia de vida, costumo dizer que desde que eu acordo estou jogando capoeira, consigo colocar a capoeira dentro da minha vida, fazer amigos, nunca desistir, lutar sempre. Os estrangeiros pegam nisso com mais afinco, para poderem compreender a cultura, a dança, a língua portuguesa. Hoje em dia a capoeira está muito forte fora do Brasil, está muito mais organizada. Ontem estava na embaixada brasileira e o embaixador disse: “já tenho um representante, você é o embaixador do Brasil, quem está mostrando a cultura é você”. E na verdade é. Gilberto Gil fez um livro que fala que em todos os países onde ele chegou o capoeirista estava lá, o capoeirista é que divulgava a língua portuguesa, a cultura. Por esse lado é verdade. A gente é que está no tête-à-tête, cara a cara com o povo, está mostrando a cultura e ensinando o português.
- Qual a importância da capoeira no mundo?
E.M. – Acho que a capoeira se tornou tão grande que não dá para incluir só uma nacionalidade. As pessoas viajam de toda a parte do mundo para participar num encontro de capoeira, falam português através da capoeira, dedicam a vida inteira à capoeira, é uma ferramenta que muda as pessoas, que faz as pessoas pensar melhor, a cuidar do corpo, a fazer amizades, a cuidar uns dos outros. É muito educacional. Um dos planos para o ano que vem aqui em Macau é introduzir a capoeira nas escolas chinesas, o que pode ajudar a preservar a língua portuguesa, porque eles vão ter que falar português, e abrir uma outra janela para através da capoeira eles possam se ligar ao resto do mundo.
- Veio da China Continental para Macau. O que encontrou?
E.M. – Em 2009 me chamaram para trabalhar em Macau, estava há cinco anos na China, e não conhecia. Cheguei a Macau e me apaixonei, me identifiquei muito. Qual de nós que falamos português não se identifica com Macau? Em qualquer esquina posso encontrar um restaurante português e falar português, ver as placas em português e a comunidade, principalmente a comunidade portuguesa, é o motivo de eu estar aqui hoje. Os meus melhores amigos são portugueses, a comunidade portuguesa me abraçou e me ajudou demais, tenho sempre que agradecer isso. É esse o sucesso da capoeira em Macau.
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