quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Subsídios para a História - Macau 95 (XVIII)


ENTREVISTA com António Conceição Jr. (cont.)





O aeroporto de Macau, versus, aeroporto actual de Hong-Kong, é complementaridade ou concorrência? A acrescentar ao que, aqui ao pé, do lado da RPC, dizem ser para voos domésticos, mas que pode vir a acolher o Concorde?...

Tudo está, penso eu, ainda por revelar... Provavelmente, à maneira chinesa, está tudo já decidido. Falta anunciar.

A China já pensou?...

A China já sabe, já tem tudo pensado. Obviamente, não haja ilusões a esse respeito...

Quando diz sim ao aeroporto de Macau, pensou...

Pensou. Aliás, a ideia do aeroporto não é uma ideia de agora. Faria parte de uma estratégia de dotar Macau de infra-estruturas. Só que as infra-estruturas são o suporte de uma actividade que deveria ter sido implementada que é a do sector terciário da economia...

Nós estamos neste momento numa situação em que, pondo o dedo na ferida, e chamando as coisas pelos nomes, temos os carros à frente dos bois, em termos da realidade de Macau. Em ter termos da realidade do contexto, aqui na região do Delta do Rio das Pérolas, salvo erro, existem cinco/seis aeroportos num raio de 200 km, o que leva a tentar decifrar se se irá dar a macauização de Zuhai ou se haverá a zuhaização de Macau.

É uma situação que nada leva a futurologia, mas que importa ter a percepção. Eu reitero a importância de Macau para a economia portuguesa e como ponto de apoio e trampolim para a abertura de mercados do sudeste asiático, que está "condenado" a ser, nos próximos 30 anos, o coração da economia mundial.

Qual é o segredo do crescimento chinês?

O crescimento chinês como do poderio de toda esta zona do mundo... Aliás, para que serve a Comunidade Europeia senão para competir e tentar equilibrar a balança, em relação ao poderio japonês?... Esta região está "condenada" a ser uma região de sucesso, porque detém o maior indice populacional do mundo, porque detém grandes riquezas minerais e doutro género e, sobretudo, porque a disciplina e a estratégia japonesas, aliadas a um novo estilo que é muito pragmático da China, tudo indica que, nos próximos 30 anos, farão desta região o centro da economia mundial.

Mas o social que, agora, ao que julgo saber, padesse de algumas omissões, vai ter que ser reformulado no confronto com algumas práticas ocidentais... Estou a referir-me à R.P.C....

A questão social na R.P.C.... O Partido Comunista Chinês condenou-se a si próprio através do seu "leader" máximo, que mais uma vez, segundo os códigos, não detém nenhum posto, mas detém algo superior a muitos postos que...que é a autoridade.

Deng Shiau Ping é na China a autoridade, não um grau hierárquico. Personifica a autoridade, isto é, outra forma mais subtil e mais vasta de ter o poder. É a autoridade e é uma autoridade.

Mas ninguém é eterno...

Ninguém é eterno, mas o que se pode eternizar, e já é irreversível, é, de facto, o desenvolvimento económico que foi implementado.

Mas estamos perante uma concorrência com outra partes do mundo onde o social é debatido e quando as partes não chegam a consensos, entram numa guerra, que é uma guerra social... Como é que vamos para o futuro?

O que se passa é o seguinte: o Ocidente tem certas preocupações sociais e laborais, mas qualquer província da China tem mais população do que toda a Europa junta. É muito importante perceber isto, porque a questão demográfica determina muitos outros factores. Nessa perspectiva, os chineses detêm uma sabedoria que sintetizo no seguinte: todo o mundo comunista ruiu, à excepção da República Popular da China. Por alguma coisa isso aconteceu, apesar de Tienamen.

Ruiu porquê? Porque todo o mundo comunista era de características ocidentais, isto é, não existia, subjacente a isto, nem Gorbachov foi capaz, com a sua Perestroika, as suas linhas de liberalização, manter o sistema, enquanto Den Shiau Ping conseguiu mantê-lo. Conseguiu mantê-lo exactamente através de uma infinita sabedoria, que não é dele, é a herança que ele transporta de 5000 anos e que tem que ver com uma coisa que eu considero absolutamente fundamental e que me dá uma grande tranquilidade relativamente ao futuro da China, desde Mao Tze Tung, e, mesmo antes, o culto da personalidade. O culto da personalidade é apenas um elemento unificador, serve de elemento de aglutinação e unificação para o desenvolvimento e a estabilidade.

Não é possível fazer uma leitura europeia, nem implementar valores europeus a uma cultura que não tem um vocabulário igual, tem a sua própria escrita, e que é também hoje já um interlocutor mundial de grande peso.

Portanto, tentar olhar a China segundo os olhos ocidentais é um grande erro. É preciso colocarmo-nos na posição, fazermos o exercício de nos colocarmos na posição chinesa, para vermos como é que as coisas funcionam.

Estas zonas especiais são, nesse pensamento, o quê?...

São o anúncio e o prenúncio de que o Partido Comunista se prepara para se auto-extinguir. Porque não se pode falar, nem pensar, em democracia para a China numa transição de 10 anos, quando está em jogo um bilião e trezentos milhões de habitantes.

Salvo erro, em 1993 ou 94, o crescimento económico da China foi o mais alto do mundo. A tal ponto que houve um sobreaquecimento da economia e houve que abrandar. É um facto adquirido que no final do milénio se assiste à queda das ideologias e se algumas sobrevivem, sobrevivem por necessidade estratégica de coesão.

Eu consubstancio isso no facto de ter afirmado que ainda existe na República Popular da China o Partido Comunista, mas existe por necessidade de manter coeso e livre do caos o país mais populoso do Oriente, que é, como dizia o Eça, "no mundo tudo passa, à excepção da China..."

A Declaração Conjunta é uma abdicação, é um acto de futuro, é uma excelente aposta no futuro, o que é?...

É um compromisso, com grandes cedências mútuas, mas, sobretudo, cedências da parte chinesa, que devo dizer, quer os chineses, quer os vietnamitas, quer os japoneses, são negociadores ferocíssimos... Os americanos que o digam em Paris, na altura do Vietname... As negociações foram extremamente participadas e, portanto, a Declaração Conjunta é o resultado possível, dentro de uma conjuntura histórica e temporal.

E para os macaenses que expectativas para depois de 1999?... Estou a falar com um macaense...

Diria que as expectativas que tenho são da parte portuguesa, porque da parte chinesa ... julgo saber...

Então o que é que julga saber?...

Que vai existir um enorme pragmatismo, que vai haver, naturalmente, um período de adaptação, que será duro, mas que será, sobretudo, pacífico, porque nós estamos demasiado perto de um Hong-Kong é ser preservado como terceira ou quarta praça financeira mundial. A estratégia da abertura das regiões costeiras constitui também uma forma de credenciar a China perante Taiwan para um futuro processo de federação chinesa, em que a China não aglutinará aquele espaço pela força, mas proporá uma federação em que haja uma livre circulação da economia, em que ambas as partes terão de lucrar. Sobretudo, a China.

Desculpar-me-á o desvio, mas vamos continuar a ter casinos e casas de penhores?...

E prostituição. E tudo aquilo que está adjacente ao jogo. É importante perceber que o próprio Vietname, que, com a guerra, foi obrigado a um radicalismo idêntico ao da Revolução Cultural, já abriu o seu primeiro casino e, portanto, a guerra do Vietname não está tão distante das velhas prostitutas da actual cidade Ho Shi Min que as jovens não possam "aprender" a mais antiga profissão do mundo.

E é preciso perceber, mais uma vez, que o Oriente não pode ser julgado pelos valores do Ocidente.

Temos aqui, apesar de tudo, alguns pequenos focos de presença ocidental, que passam, por exemplo, pela comunidade católica. O que é que pensa que vai acontecer em terra de budas e de outras religiões?...

Quando, pela primeira vez, os padres, os religiosos portugueses chegaram a terras da China, chamaram aos seus colegas budistas "enviados do demónio". Por sua vez, os seus colegas budistas, consideraram-nos colegas...

Porque no padrão chinês é possível caberem muitos deuses, tanto assim que o jesuíta Adam Spall foi nomeado mandarim de um dos imperadores chineses, o que leva a perceber que a disponibilidade chinesa para a novidade está desprovida de preconceitos e se há alguém, neste momento, que tenha preconceitos é o Ocidente.

Mas, porque este século anúncia o transculturalismo, é inevitável a aproximação do Oriente e do Ocidente e a mútua decifração. Mas que nenhum ocidental caia na tentação de, com os seus valores, classificar o Oriente, porque o Oriente não classifica o Ocidente exclusivamente segundo os seus valores.

Permita-me que o imagine na montanha rodeado de jovens face a um 99 - já amanhã. Começava por o rodear de jovens macaenses. Proponho que lhes fale...

Primeiro que tudo, deixe-me que lhe diga, não tenho vocação nenhuma para profeta...

Mas é um macaense enraizado, é um homem da Cultura...

Para isso, necessito de fazer um preâmbulo para dizer o seguinte: os meus jovens conterrâneos não têm, nem as minhas memórias, nem os meus valores, nem o meu sentido da portugalidade.

Mais uma vez, eles desdobraram-se, eles são o resultado de outro desdobramento, desdobramento esse que ocorreu, exactamente, com a Revolução Cultural, que não só teve reflexos em Hon-Kong e Macau, como iria provocar o Maio de 68, em Paris.

Nessa altura, Macau ainda detinha uma enorme comunidade macaense , com os seus palacetes, mas Macau foi sempre também um lugar de compromisso político com a China, um lugar de equilíbrio precário permanente, com ameaça de invasão chinesa dos guardas vermelhos.

Terá sido esse o momento em que a gota de água extravasou no copo, que provocou a "fuga", o abandono precipitado das grandes famílias macaenses de muitas posses, que venderam ao desbarato o seu património arquitectónico, dando lugar à sua primeira destruição, porque o venderam a chineses que não tinham de Macau memória, apenas interesse no negócio.

Logo, esses macaenses emigraram. Por outro lado, aqueles que ficaram, fizeram a sua transição 30 anos depois dela ser assinada... O que releva de novo a inteligência do macaense na defesa do seu próprio futuro. Os macaenses que poderam ficar, muitos desles casaram-se então com a comunidade mais forte. Contrairam matrimónio com homens e mulheres chinesas. E desse matrimónio nasceu essa geração de jovens para que me pede que fale...

Casaram com as filhas de Deng Xiau Ping?...

Talvez... Eles terão 20 e muitos 30 anos. São, portanto, jovens que já comportam uma enorme componente chinesa, mas que rejeitam ser chineses. Essa a virtualidade dos jovens.

É ofensa chamar chinês a um macaense?

Eu diria que um macaense prefere ser chamado português. Não diria que é uma ofensa, mas...

Não gosta de ser confundido?...

Não gosta de ser confundido, ainda que os seus traços genéticos, muitas vezes, o apontem para não ser branco... Mas "o hábito não faz o monge..."

Está a falar, portanto, aos jovens...

Pouco tenho para lhes dizer. A barreira da geração é muito importante. No entanto, eles serão, quanto a mim, o futuro possível dos macaenses, que poderão, em função da estratégia existente, de Portugal para Macau, e de Portugal para si mesmo, tendo Macau como cenário, eles serão o elemento de ligação entre Portugal e a China, porque é importante, muito importante, negociar com a China, mas nunca fora de Macau, ou sem passar por Macau.

Agora o auditório que o rodeia é de jovens chineses. Ciontinua a fazer esse discurso?...

Continuaria a fazer o mesmo discurso, dizendo apenas que não tenham medo dos portugueses, assumam na sua plenitude a sua identidade miscegenada e orgulhem-se dela, porque é na miscegenização que se inicia o discurso intercultural e o princípio do novo milénio vai, inevitavelmente, proporcionar dois mundos - Oriente e Ocidente -, o encontro, o diálogo, a cooperação.

Qual é a imagem que o macaense tem do português médio - hoje? O português do "à beira-. mar plantado..."

Lá?...

Lá, no Atlântico...

O português médio é um ser com enormes potencialidades, que ainda não descobriu. É alguém com enorme afabilidade, com uma enorme afabilidade, mas que tem estado, ao longo deste processo de transformação de Portugal, muito acabrunhado, entristecido. Todos os povos são bons, mas nutro uma especial afeição pelo povo português.

Como é que o vê?...

Vejo-o à procura de si próprio, porque o povo portuguyês precisa, infelizmente, de um "leader". Digo infelizmente porque, embora os "leaders" políticos evoquem o seu nome, evoquem o nome do povo muitas vezes em vão, eu diria que o povo português precisa de se reencontrar consigo próprio, porque sabendo quem foi no passado, ainda transporta consigo a carga, hoje bolorenta, desse passado, impedindo-o de ser hoje o futuro.

E o que é que acha que o chinês desta região do mundo, habituada a lidar com o macaense, tem do português de que tem referências a partir deste território?

Alguém sem um cenário geográfico, portanto, alguém, invertendo os papéis, da maneira como o chinês é visto de Portugal, isto é, alguém de quem se imagina um país, mas cuja país é lido em Macau através daquilo que o Governo de Macau lhes mostra.

Estamos a mostrar?...

Eu diria que poderíamos mostrar muito mais, assim soubessemos perceber e tivessemos, sobretudo, humildade. Quando se está em casa alheia é preciso ser humilde, porque a humildade
confere a disponibilidade para perceber o Outro e a nossa postura no território precisa de se caracterizar por unma permanente disponibilidade em perceber, porque só assim se pode governar.

A próxima entrevista será com o Arq. Manuel Vicente

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