... aí fica a primeira de uma nova série de breves crónicas que sei ter sido publicada, não me lembro em que jornal ou lusa revista. Chamei-lhe HIPERMORTE. Com ela (re)começo - bem vivo ...
"Do tempo em que, catraio ainda, minha mãe me levava à tranquila mercearia do sr. Luís, três coisas tenho vivas na memória: o rebuçado de meio tostão com que, forreta, o dono da casa me presenteava, após umas boas dezenas de escudos de compras; o aspecto da loja, com as tulhas repletas de feijões, açúcar, que sei eu?!... e aquela lista de artigos diversos ("então que mais vem a ser: colorau, pimenta, sal, canela, cravo de cabecinha, bolachas?...") que, esgotada a vontade inicial do cliente, o sr. Luís fazia passar pelos ouvidos da freguesia, a compensar a impossibilidade de ter as existências alimentares, e outras, todas, ali, à vista, como hoje, por exemplo, acontece (com a devida protecção) nos supermercados modernos. Era a pacatez comercial da época em que, na caso, a maioria dos merceeiros se esforçava por salvaguardar ao máximo as questões de higiene, embora tivesse que meter as mãos na tulha ... "Ganhavam-se" assim os micróbios dos cotovelhinhos à mostra, mais os do merceeiro de bata cinzenta (de origem e do pó das batatas). Mas a gente lá se ia criando ...
Chegaram anos depois os supermercados, os hipermercados, os mercados comuns - e tudo se transformou. Acabaram-se os rebuçados de meio tostão, deixou de ser necessária a cantilena do sr.Luís e, mais radical do que tudo, a higiene física, na maior parte dos estabelecimentos, passou a constituir um facto. Um facto evidente e altamente meritório. Só que, pelos modos, a esperança de vida não aumentou, ou não aumentou na proporção que se esperava ...
O que, salvo melhor opinião, levanta esta situação imprevista, quase dramática: estamos a morrer da cura. Por outras palavras, banido aquele tu-cá-tu-lá com a tulha, que nos dava de graça o contrapeso invisível dos micróbios, entrámos na era do asseio, tão perfeito quanto possível, e meteram-nos a ensacar o que não queremos, a preços que não podemos discutir individualmente com um qualquer sr. Luís. Fomos "compensados" com a desumanização e a febre das compras.
E, tendo mandado àquela parte os referidos e indesejáveis micróbios, passámos a ser consumidos - pela sociedade de consumo, que nos arruína as artérias à mesma velocidade, pelo jeito, que as tais bactérias, bacilos e quejandos nos dizimavam pacientemente as vísceras. Deste modo, enquanto não aprendemos a dominar as (super e hiper) pressões que se sucederam à calma provinciana, embora nem sempre higiénica, do sr. Luís, a certeza que podemos ter é de que, em última análise, apenas mudámos ... de morte. Dispomos agora da hipermorte, que é fulminante e, por isso, menos provocadora de arrastados e dolorosos sofrimentos. O que já é um benefício: sobram-nos novos intervalos para ver o azul do céu e dar milho aos pombos. Se, entretanto, os não gastarmos em visitas aos sempre mais recentes (e maiores) "shoppings" da região.
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