(continuação
do Epílogo da obra premiada)
"(...) A experiência - dizia-me ele numa das últimas cartas que me escreveu do Rio - desperta virtualidades insuspeitadas, é como chave abrindo, uma vezes na dor, outra na alegria, misteriosos escaninhos do espírito. Não se trata verdadeiramente dum enriquecimento que o homem receba do exterior, mas da descoberta de mundos ignorados que dentro dele existiam. A experiência é a varinha mágica que de momento a momento nos desvenda as nossas próprias paisagens interiores. Por isso o espírito é como um universo em expansão, refazendo-se continuamente dos materiais de que é formado. "Há uma coisa que eu agora compreendo muito bem - estas as suas palavras - é o drama do exilado."
Compreendera-o porque o senti na sua pele; e analisava-o, quem sabe se na esperança de o superar, como um cientista analisa um fenómeno do mundo exterior.
Lembrava as pequenas coisas do seu quotidiano alfacinha: o café que frequentava, o bairro em que vivia e os rostos que nele se lhe tinham tornado familiares, a actividade profissional que exercia, os camaradas de trabalho ou de clube, a família, os amigos, as reuniões festivas, os cinemas, os teatros, as livrarias por onde, de vez em quando, passeava as suas curiosidades intelectuais, as ruas que constituiam o grande cenário do dia a dia aparentemente desordenado da multidão. Tudo isso lhe fazia falta, tudo isso lhe era insubstituível como um todo incidível a que estava implacavelmente ligado.
Também ali, no exílio, havia livrarias, cafés, cinemas, teatros e se podiam criar amizades, arranjar uma profissão, travar relações para preencher o espaço vazio que dentro de si se formara. É que todas essas coisas só tomam relevo emotivo e nos penetram intimamente quando a gente que as anima coexiste connosco num projecto de vida, projecto racionalmente informulado, mas que nem por isso deixa de dar sentido ao mundo de cada um de nós. E ali, no Brasil, aquelas coisas, apesar de idênticas às da pátria, conformavam um outro projecto em relação ao qual era um intruso inassimilável.
De resto estava velho, destituído, portanto, daquele mínimo de plasticidade moral que permite que no ser se imprimam ainda novos hábitos, gostos, maneiras de existir.
É certo que trouxera consigo a família, mas até ela tinha algo de diferente porque também ela sofria dum vazio semelhante ao seu."
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