terça-feira, 1 de abril de 2014
25 DE ABRIL - onde se lembra o escrito em Abril de 1988
"Escrevo, uma coluna na qual digo, desde a primeira vez em que a assinei, que uma coisa - seja qual for - é actual desde que eu tenha pensado nela nesse dia"
Umberto Eco
Em véspera das comemorações do 25 de Abril, tenho ganas de aproveitar para, "postas em sossego" as coisas boas - e foram várias - que a revolução nos trouxe, sublinhar, sem masoquismos e com o fim de dar contributo, modestíssimo embora, para um certo esclarecimento da juventude, o que foram alguns pequenos-grandes dramas vividos no período que se seguiu à data festejada de cravo vermelho na mão. Aliás, é conhecida a "tendência" histórica para as repetições ... É necessário estar alerta. Anotem-se, por isso, meia dúzia de apontamentos, quiçá, enjoativos para os mais velhos.
Destruição da hierarquia: tivemos enfermeiros a quererem fazer-se de médicos e contínuos a sentarem-se nas cadeiras de empresários experientes. Entre generais e soldados a diferença também ameaçou ser pouca. Alunos ignoraram professores e, nalguns casos, estes quase chegaram a duvidar dos seus conhecimentos, por mais seguros que fossem.
A traição no quotidiano: viveram-se tempos de autêntica libertinagem e da mais descarada traição. Velhos companheiros sentiram abaladas amizades que supunham sólidas. Filhos rebeliaram-se contra pais e vice-versa. Famílias inteiras houve onde a cordialidade foi banida, como coisa ultrajada.
Saneamentos e sequestros: reuniram-se assembleias em nome de interesses ditos superiores para "votar" a desorganização das empresas e expulsar, às vezes, sem ponta de razão, os que mantinham as suas estruturas de pé. Sequestrou-se por tudo e por nada. Fomentou-se o clima do mal-dizer. Abriram-se as portas aos, e às, profissionais da coscuvilhice. Reduziram-se ao silêncio os incómodos. Fechou-se gente em gabinetes. Condenaram-se quadros à inacção. Matou-se - com armas mais refinadas do que as de fogo. Suborno e chantagem: acordaram-se especuladores. Roubou-se à descarada. Assaltou-se e saqueou-se a propriedade privada. Enveredou-se pelos caminhos do suborno e a chantagem surgiu à luz do dia. Simularam-se, ou exageraram-se, desgraças para obter benefícios de toda a ordem. Incentivou-se a vingança ... da vingança. Instalou-se o ódio. Manipulou-se a informação. Avivou-se a alcoviteirice e a regateirice.
No trabalho e na política: radicaram-se posições. Despertaram-se antigas querelas. Quebrou-se o verniz. Liquidaram-se os eficazes. Promoveram-se inaptos. Caíram máscaras. Vieram à liça carradas de oportunistas - de todos os quadrantes. Viraram-se casacas ... Mentiu-se descaradamente a diversos níveis. Soçobrou muito trabalho sério e ordeiro. Envenenaram-se relações de trabalho. Assaltaram-se as finanças públicas. Inventou-se o bem-estar por decreto. Preguiçou-se. Soltou-se em força o desemprego. Centenas de patrões e trabalhadores ajustaram contas de forma pouco ortodoxa. Falou-se em excesso e falseou-se demais. Instalou-se a dentada sorridente. Imperaram os pulhas. Revelou-se um sem número de heróis de algibeira. Portugal como um todo, ignorou-se. Entregou-se em nome de princípios, mas esqueceu meios. Perdeu uma certa credibilidade externa. Satisfizeram-se alguns apetites internacionais. Passada a fase do "folclore", resvalou para a desgraça da pedincha. Endividou-se de maneira desastrosa. Esteve à beira da bancarrota. Entrou na corrida dos grandes dominados pela inflação. Perdeu a vergonha. Enxovalhou a bandeira e o hino nacionais. Troçou da Igreja. Omitiu os sentimentos populares profundos. Faltou-lhe coragem. Fingiu, deu-se ares, andou por aí a exibir pontes que outros haviam construído e vendeu almas.
E ganhar? O que ganhou? Ganhou, de facto e sobretudo, a grande, a enorme possibilidade de dizer isto tudo sem receios. O que é importante. Importantíssimo. Mas não é tudo: falta libertar completamente a criatividade que, esta sim, esmaga deuses - à esquerda e à direita. E, por natureza, é jovem. Com ela, e por ela, vale, apesar de tudo, festejar uma data. Sem mentiras.
Em ABRIL de 1988
Já passou. Já foi. Mas foi. E a volta deu-se. Apesar de tudo, sem derramamento de sangue. Salazar, a quem chamavam "o botas", agira, no mínimo, como um rural em S. Bento, rodeado de pides, de censores, de gosmas, e imaginando Portugal à sua própria imagem e semelhança de homem pouco respeitador, de facto, das liberdades e direitos dos seus concidadãos. E aqui estamos nós, ultrapassadas as tormentas, documentos assinados, na Europa que se deseja garante de paz e bem-estar. Que é uma coisa jovem. Se for livre, isto é, respeitadora de si própria e da identidade de cada um dos seus pares. Sem muros ideológicos ou de betão. E sem medo de escutas ou de vizinhos de orelhas coladas às paredes."
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