Timothy Simpson, professor da Universidade de Macau, defende que comprar não é apenas adquirir produtos e jogar numa slot machine não é somente apostar dinheiro: são formas de treino para o capitalismo.
O vice-reitor da Universidade de Macau e professor do departamento de Comunicação, Timothy Simpson, ficou intrigado quando percebeu que a reabertura de um hotel junto da universidade atraía uma atenção inusitada dos turistas chineses, a maioria dos quais estreantes nas viagens fora do Continente. Sem perceber o que sentiam ao ver um hotel que era uma espécie de parque temático da Mitologia Grega e o que isso significava para eles, espantou-se por ouvir de uma alemã, que também os viu, a seguinte frase: “Quando passei pelos turistas e vi as suas caras lembrei-me de nós na Alemanha de Leste quando o Muro de Berlim foi derrubado e fomos conhecer a Alemanha Ocidental”. Essa ideia fê-lo começar a estudar a forma como o urbanismo cria imagens mentais.
No seu último artigo, publicado a 27 de Março no International Journal of Urban and Regional Research, Simpson fala sobre o papel de Macau e dos seus casinos na estratégia económica da China. Chama-se “Macau Metropolis and Mental Life: Interior Urbanism and the Chinese Imaginary” (em português, “A Metrópole de Macau e a Vida Mental: Urbanismo Interior e o Imaginário Chinês”).
– Podemos dizer que as autoridades chinesas montaram em Macau uma espécie de laboratório de consumo? Um sítio onde observam como os chineses se comportam num local dominado pela lógica capitalista?
Timothy Simpson - Não diria que as autoridades chinesas montaram intencionalmente um laboratório. O que há de intencional é a política oficial da China que quer alicerçar a próxima etapa do crescimento económico no consumo interno. Para isso é preciso estabelecer uma base de consumidores urbanos que impulsionem a economia interna, o que implica que as pessoas se mudem do campo para as cidades pois são os locais onde elas vão consumir. O objectivo é levar, em dez anos, 100 milhões trabalhadores rurais para as cidades. Esta é a política oficial e não a minha versão, mas penso que Macau acaba por ter um papel nesse processo, ainda que de forma não intencional. Penso que Macau pode ser um laboratório para os turistas da China que cá entram. Isto porque o Governo chinês faz uma gestão dos vistos atribuídos pois só permite que alguns residentes de cidades e províncias venham a Macau e Hong Kong. Com isso, esses turistas acabam por ter uma ideia de como é a vida nestas cidades. Um exemplo é o Venetian, onde existe um ambiente urbano falsificado. Aqui os turistas têm uma espécie de treino de como serem consumidores.
- Que tipo de consumidores os chineses podem ser aqui? E de que forma isso é diferente do que podem ser noutros lugares da China?
T. S. – A diferença óbvia é o jogo. Isto porque vejo o jogo como uma forma mais exagerada de consumo, já que não é produzido nenhum bem e nada é consumido. É uma espécie de acto vazio. É isso que torna Macau diferente do resto da China. Por outro lado, o território está a tornar-se muito rapidamente num lugar de consumo. E ir ao centro comercial e comprar cosméticos é parte desse processo de aprender a ser um consumidor. Quando cheguei cá há 12 anos só havia o New Yaohan para fazer compras - não havia centros comerciais. Mas desde aí apareceram shoppings enormes como os que existem nos casinos e no centro de Macau. [E os turistas enchem-nos porque] os produtos são mais baratos que na China Continental por causa do regime fiscal mais favorável que existe em Macau.
- Essas pessoas têm assim contacto com uma ideia de consumo tal como é entendida no mundo ocidental...
T. S. – Sim. [E têm contacto com] todas estas coisas que são os motores do capitalismo. Esses bens desnecessários que compramos e de que não precisamos realmente. Mas o facto é que o capitalismo depende de nós querermos coisas que não preencham nenhuma necessidade humana. Macau está cheia desse tipo de produtos – Louis Vuitton, relógios Rolex, malas – qualquer bem de luxo. E é tão pequeno que não se pode quase andar aqui sem se encontrar esse tipo de produtos.
- Por exemplo, Nova Iorque é uma cidade que tem uma ideia associada: um lugar onde os sonhos se podem tornar realidade. Que ideia os chineses associam a Macau?
T. S. – Não sei, porque não sou chinês. Sinto que este projecto tem uma limitação muito grande que é a falta de conhecimento em primeira mão do que significa ser um turista chinês que chega ao território. Sobretudo aqueles que vêm pela primeira vez.
- Tenho a ideia que Macau é associado à ideia de liberdade. Tem esse sentimento?
T. S. – Há um antropologista chamado Michael Herzfeld que tem um conceito chamado “intimidade cultural” em que diz que, apesar de existirem coisas que uma sociedade não autoriza oficialmente, são criadas formas para que elas possam acontecer. Nesse sentido é possível que Macau desempenhe esse papel em relação à China. Aqui há coisas que são perfeitamente acessíveis, mas são ilegais no Continente. Interessa-me muito a ideia de liberdade. A China tenta estender e aumentar alguns tipos de liberdade às pessoas de uma forma cuidadosa. É o que acontece com os vistos que são atribuídos aos chineses do continente que visitam Macau. O Governo dá uma autorização de entrada só a algumas pessoas, as que vivem nas províncias mais prósperas. Por isso, alguém que viva em Xangai pode obtê-lo, mas uma pessoa que venha do interior já não. E se por um lado a China alarga a liberdade para que algumas pessoas viajem, por outro é muito cuidadosa na forma como calibra a sua atribuição para que essas pessoas sejam controladas. Assim, apesar de irem a casinos e fazerem tudo o que lhes apetece, na realidade parece-me que há um controlo. As autoridades incentivam-nas a participar numa actividade que quase as treina a viver numa sociedade capitalista e individualista. Tenho um outro artigo em que falo do jogo electrónico. É que este, ao contrário do acto de jogar, que é algo social, é mais individualista – está-se sozinho numa slot machine. E penso que há, no jogo, formas que incentivam uma certa racionalidade, capacidade de cálculo e especulação que são também parte integrante de como o capitalismo treina as pessoas a viver em sociedade. Porque isso trata-se da lógica do capitalismo – ele precisa que as pessoas se comportem de certa forma e cria actividades para as ensinar a comportar-se. Nesse sentido, cada nova liberdade que é atribuída às pessoas torna-se numa nova forma de as controlar também. As duas coisas estão ligadas.
- O que o levou a escrever este artigo? Que ideia quis desenvolver?
T. S. - Houve uma situação que me levou a escrever o artigo. Depois de o Venetian e de o Sands terem sido construídos foi feita uma passagem interna para os unir. E, sabendo eu que o Venetian era o sexto maior edifício do mundo e o Sands Cotai o sétimo, quando os ligaram pensei que aquele devia ser o maior local fechado do mundo. E o que posso dizer depois de pesquisar na Internet é que se contarmos os dois espaços como um só um, este será mesmo um dos maiores espaços do mundo, senão o maior. Porque quando se une todo o espaço interiorizado, ele imenso – equivale a quase oito por cento de todo o território de Macau. E foi isso é que me levou a escrever este artigo em particular. Mas a ideia principal do artigo é a tendência de se criar em Macau um espaço urbano encapsulado e interiorizado e a forma como o capital transnacional participa desse processo.
- Como assim?
T. S. - Quando vim para Macau, o Cotai tinha acabado de ser criado e era uma terra vazia. Na altura perguntava-me para que iria servir aquele terreno pois não havia lá nada. Depois percebi que havia planos muito detalhados para apartamentos, escolas, mercados, bombeiros e todo este tipo de coisas. No entanto, quando acabou o monopólio do jogo, estas empresas multinacionais que tinham obtido concessões precisavam de espaço para construir os seus casinos e os planos para esses terrenos foram simplesmente abandonados em favor das multinacionais. Nesse sentido elas fecharam o ambiente urbano e criaram nessa terra espaços urbanos interiorizados. De todos, o Venetian é o melhor exemplo – é como uma cidade falsa debaixo de um tecto. E fiquei impressionado pela forma como Macau ficou caracterizado por estas experiências urbanas interiorizadas e pensei que o capital transnacional fechou a cidade.
- Este artigo faz parte de um projecto mais amplo sobre o urbanismo em Macau. Por que razão quis dedicar-se a este tema?
T. S. - Quando o visto individual para Macau foi lançado houve muitos turistas a vir cá pela primeira vez. Aqui mesmo perto do edifício da universidade há um hotel chamado Palácio Imperial e que antes se chamava Hotel do Novo Século. A mudança de nome aconteceu quando foi transformado num casino inspirado na Mitologia Grega. Foi nessa altura que eles construíram aquela fonte ridícula em frente do hotel [com imagens de deuses da mitologia grega pintados a cores] e na semana da inauguração houve imensos autocarros da China a levar turistas lá. O hotel disse que nessa semana tinham ido lá 50 mil turistas por dia – um número que me parece exagerado –, mas a verdade é que eram dezenas de milhares de pessoas. E eu perguntava-me o que estariam a pensar. É que de todas as coisas que podiam ver, o casino da Mitologia Grega, que é uma espécie de parque temático, é o sítio mais ridículo onde se poderia levá-los. Mas o facto é que a China tem milhares de parques destes. E por alguma razão a primeira coisa que a China faz quando começa a abrir a sua economia é construir parques temáticos. Foi isso que aconteceu com Shenzen, a primeira zona económica especial.
- Recorda-se de mais alguma ideia que tenha retido dessa altura?
T. S. - Havia uma senhora que trabalhava na universidade nessa altura e que era de Dresden, na Alemanha de Leste, e que me disse: “Quando passei pelos turistas e vi as suas caras lembrei-me de nós na Alemanha de Leste quando o Muro de Berlim foi derrubado e fomos conhecer a Alemanha Ocidental”. Ela dizia que a expressão que as pessoas tinham nas suas caras era a mesma e foi isso que me impressionou. Vi que estava a acontecer alguma coisa muito interessante em Macau. Um feito de importância histórica a nível mundial porque mostrava a transformação da China. E essa transformação é muito importante para o mundo porque a economia chinesa lidera a economia mundial. E nesse sentido Macau pode ter tido, por um acidente completo, um papel importante nesse processo geopolítico. P. S. A.
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