Entrevistadora: Maria de Lourdes Brandão
Entrevistado: Oliveira Salazar
Publicação: semanário português O País,
de 31 de Março de 1983 (Biblioteca Nacional)
- O senhor disse-me noutro dia que os portugueses tinham instalado em cada terra onde chegaram um pedaço de Portugal. Pode dizer-me como o fizeram?
- Com muito trabalho e dedicação, misturando-se com as populações locais, levando-as para o seio das suas famílias. Fazendo esses povos viverem no seio da família portuguesa. Portanto, é natural que o português se fale mais seriamente do que uma língua aprendida na escola, porque é uma língua aprendida na vida, com a família, com os amigos. E assim como foi com a língua, os costumes, as tradições, a "maneira de viver", transmitiram-se facilmente de uns para outros.
- Por isso é que o senhor acha que Portugal conseguiu esses resultados em todos os países para onde houve emigração?
- De facto, Portugal conseguiu isso. Mais ainda, na África e no Brasil. Olhe este exemplo: há tempos, os Estados Unidos mandaram uns industriais para a África a fim de estudarem assuntos relacionados com a pesca. Eles possuem uma indústria de pesca enorme e com uma extraordinária clientela espalhada pelo mundo. Simplesmente, não têm peixe para abastecer essa clientela. E então apareceram-lhes as nossas costas de África, ricas de peixe. É uma riqueza extraordinária, o peixe das nossas costas de Angola. E de que se lembram eles? De utilizar a nossa África - Angola - como país abastecedor de matéria-prima para a sua indústria de peixe.
Quando lá foram esse senhores altamente colocados na indústria dos Estados Unidos e por lá andaram a ver o que haviam de comprar, onde se haviam de abastecer, é que viram a riqueza daquelas terras.
Eu achei curioso e fez-me sorrir a inocência e o primarismo daqueles homens que pensavam que quando nós dizíamos que temos cidades portuguesas na África, nos referimos a uma porção de palhotas de negros, cercadas com arame farpado para não se entrar ali, com um pau no meio para se içar a bandeira portuguesa! E pronto: aquilo era uma cidade portuguesa.
Mas chegaram e a sua estupefacção foi formidável, quando viram que aquilo eram cidades autenticamente portuguesas, mas implantadas ali como são implantadas no Brasil e no Oriente. Todas autenticamente portuguesas. Quer dizer: aquela gente tem a religião de Portugal, fala a língua de Portugal, tem a maneira de viver de Portugal. Porque a colónia portuguesa é de molde a influenciar as reacções das pessoas, em face da vida. É igual em todas as partes onde o português chegou e se estabeleceu.
- É isso mesmo ...
- Isso aconteceu também no Brasil.Veja quando se fala no Brasil não se vê um país americano, mas simplesmente um país europeu implantado em pleno seio da América. Isso é que é interessante e é o distingue a colonização portuguesa de qualquer outra.
- É verdade ... Foi esse espírito que realizou o milagre da unidade brasileira, evitando que o Brasil se transformasse, como o resto da América do Sul, numa colcha de retalhos...
- Portugal, sendo realmente um país pequeno, tem a visão grande, talha em grande. Chegou à América e talhou em grande o Brasil. E quando, pela evolução histórica desses territórios, eles se tornam independentes, é um todo grande que se torna independente, com todos os seus valores de projecção internacional.
É nisto que tem que se atentar, quando se criticam os portugueses e a sua obra. Porque não se pode atender a tudo e os portugueses dão mais valor às coisas de ordem espiritual. Por exemplo: a língua, a religião, a forma de viver. Há tanta forma de civilização! Nós levamos a nossa. Nós não inventamos uma civilização; o que fomos, é educados numa civilização latina e cristã. E transplantamo-la para onde vamos. Levamos aquilo como herança nossa, transmitimo-la aos outros e eles depois transmitem-na de uns para os outros.
A civilização, nós a transplantamos mais pura do que outros povos, que a adulteram um pouco, pela sua própria maneira de ser. Adulteram-na, por exemplo, os povos do Norte, que são mais materialistas e levam consigo esse materialismo.
- Graças a Deus, os portugueses não são assim ...
- Portugal vai com o seu sonho, a sua mística, com a generosidade e fraternidade dos seus sentimentos.
- O povo português é muito bom!
- E é isso que é importante. O português emigrante chega a uma terra estranha, instala-se e vive ali como vivia no seu país. Portanto, aquilo fica um bocadinho de Portugal implantado noutro meio.
- Brasil e Portugal formam realmente uma Pátria, quer dizer, são dois países, mas é tanta coisa que os une, que os milhares de portugueses que vivem no Brasil gostariam de ter os mesmos direitos dos brasileiros e que Portugal desse também reciprocidade aos brasileiros que vivem cá. Quer dizer, formaríamos uma comunidade ligada pela língua, pela cultura, pelas tradições. O senhor acha que isso será possível?
- Sim, poderá, pela evolução das coisas. Havia mesmo de ser difícil ter relações amigáveis com o Brasil se não se desse a essa amizade um realismo traduzido numa comunidade de direitos das pessoas.
- O senhor disse-me, no outro dia em que conversámos, que Portugal (europeu e africano) e Brasil, formavam a maior comunidade do mundo, unidos pela mesma língua. Eu só lamento é que o senhor nunca tivesse querido ir ao Brasil. Mas o senhor só gosta de trabalhar ... trabalhar ... trabalhar ... Nunca arranjou tempo para passear um bocadinho, pois não? O senhor podia ter ido ver os portugueses radicados, que eles gostam tanto de si ... Teria sido uma grande alegria para todos ...
- Talvez sim ... (e ele ri muito com as minhas palavras).
- Talvez sim ... Mas o senhor nunca lá foi!
- Mas o meu coração está lá ... (ele continua a rir, mas já comovido, beija-me as mãos).
- Ao menos um bocadinho está no Brasil, não está? Posso escrever isso?
- (Já sério). Escreva ... e diga que está também em África ... E em todos os lugares onde existe um português ...
- Sobre as províncias africanas, o senhor já outro dia me disse muita coisa que me impressionou profundamente. Eu não conheço o Portugal africano, mas todos me dizem que lá estão a ser construídos hospitais, escolas, barragens, estradas, que tudo aquilo está a transformar-se num país moderno...
- Há-de um dia ir lá!...
- Gostaria muito ... E se Deus quiser, irei um dia. Se eu ficar por aqui é mais fácil, porque no Brasil trabalho muito. Mas quando estou em Portugal não me apetece sair daqui ... Quero matar saudades da minha família, ficar junto do meu pai, comer bacalhau, beber vinho ... O senhor sabe que engordei uns quilinhos desde que cheguei? Porque adoro bacalhau ... E acho que não há comida melhor do que a portuguesa ... E o senhor? Qual é a comidinha que mais gosta? Conte que isso não digo a ninguém ...
(ele riu muito, achando engraçada a pergunta e a minha maneira de falar). Responde:
- Pois eu aprecio todas as nossas comidas. Gosto de tudo, mas também prefiro bacalhau...
- Sabe? O prato que eu mais gosto é bacalhau assado na brasa e broa. Broa ... acho que o senhor não sabe o que é. É um pão que se come em Braga, é mais conhecido no Minho.
- Eu sei muito bem o que é. É um produto do milho.
- Mas aqui em Lisboa não gostam, e eu fico triste, porque não encontro broa para comer ...
- Eu também gosto muito e é um castigo para arranjar broa para mim. Tenho de esperar que me mandem da minha aldeia ...
- Pois é. Os lisboetas não querem engordar, por isso não comem broa, mas não sabem o que perdem.
Agora outro assunto: que mundo o senhor gostaria de deixar aos jovens? Primeiro, pensando em Portugal, com a graça de Deus ...
- E também com muito trabalhinho que a gente tem ...
- Eu sei ...
- O mundo está desequilibrado e enlouquecido. Ninguém se entende, aí por fora ... Mas não me admiro com isso, porque se deram nos últimos anos evoluções tão rápidas em vários domínios que fizeram perder a cabeça dos homens. Veja, por exemplo, a bomba atómica e as viagens interplanetárias.
- O que me diz sobre a ida do homem à Lua?
- Acho que estamos a criar, com essas explorações lunares que não valem absolutamente nada para a paz, um germe para futuras guerras. Aquilo é um posto de observação extraordinário para devassar os grandes espaços terrestres, como a China, a Rússia, os Estados Unidos. Ora bem, quando a China tiver a percepção perfeita, completa, de que está a ser observada dum cantinho da Lua, onde ela não pode ir, porque não sabe, sem poder evitar de ser devassada e sem poder fazer a outros o que os outros lhe fazem, colocará o problema internacionalmente.
É uma coisa espantosa os conhecimentos que permitem aos sábios fazer um veículo que vai daqui até à Lua, sabendo-se rigorosamente a hora, o dia e o minuto em que lá chegam e depois, o retorno, também o dia, a hora e o minuto em que podem cair no Pacífico, no sítio tal, com diferenças mínimas.
Eu tenho muito medo que isto envaideça de tal maneira os norte-americanos, que eles pensem que tendo aquilo, têm tudo e não têm. Tem, apenas, um ponto de observação. Mas, em todo o caso, não temos de concordar que a inteligência humana é qualquer coisa de fantástico, de extraordinário, para poder fazer as descobertas e os estudos necessários que permitem realizar essas viagens. É claro que os homens não fazem lá coisa nenhuma.
Neste momento D. Maria Jesus interrompeu-nos porque tinha chegado o fotógrafo, que nos tirou algumas fotos e se retirou com ela.
A conversa com Salazar continuou.
- Agora outra coisa senhor Presidente. O senhor sabe que nestes últimos anos diminuiu consideravelmente a emigração portuguesa para o Brasil. As razões apresentadas são que o cruzeiro vale pouco, em comparação com o escudo, a distância é muito grande e as passagens entre os dois países são caras. Por isso os portugueses que querem emigrar agora, ou vão para o Ultramar ou para a França, ou para a Alemanha.
O que eu tenho medo é daqui a alguns anos a colónia portuguesa do Brasil desapareça, porque restarão só os filhos dos portugueses, que já são brasileiros. De que maneira acha que se poderia incentivar de novo essa emigração ou, se isso não for possível, pelo menos preservar todos os laços que unem Portugal ao Brasil através da colónia portuguesa, que é constituída por milhares de pessoas que trabalham e vivem lá, mas adoram Portugal?
- O problema da emigração portuguesa actualmente é difícil de resolver, porque os países europeus estão fazendo uma grande reforma nos usos industriais que exigem uma incorporação de mão-de-obra de que eles não dispõem, porque aquela com que contam reservam-na para futuras operações militares e educam essa gente nos campos do respectivo treino, não a desperdiçando. Por outro lado, a mão-de-obra é muito barata, e como eles, nos seus interesses, deixaram elevar os salários a alturas incomportáveis, que nós não podemos pagar, não podemos contrariar a emigração pagando o mesmo que paga a Alemanha ou a França.
De forma que o problema tem de ser tratado de dois lados: primeiro, do país que recebe os emigrantes. Compreendo que é um problema muitíssimo difícil, porque não podem dispensar os imigrantes, sobretudo o imigrante do país pobre, do país que não paga tanto como eles pagam. Esses homens deixaram-se ir no entusiasmo do desenvolvimento das suas industrias, para chegarem a esta situação de darem trabalho a pessoas de países pobres. Então atraem os nossos emigrantes ... E estão lá a trabalhar, nestes tempos, uns milhares de pessoas, tanto na França como na Alemanha.
Eu vejo essa emigração sem grande entusiasmo, apesar de que todos voltam a Portugal já com um automovelzito ...
- Até lhes chamam os "vacanças" ...
- Eles vêm por aí a baixo com o seu automovelzito, mas aquilo não vale grande coisa. Mesmo que um ou outro possa aprender por lá uma arte ou ofício, sobretudo na metalurgia, pouco adianta, embora façam lá operários de simples trabalhadores dos campos ...
- Acha que isso não se pode impedir porque as condições que lhes oferecem são melhores, mais vantajosas?
- Não se pode impedir que o português procure melhores condições de vida, em países onde lhes dizem: - Vinde para aqui, você tem isto, tem aquilo. O problema, no entanto, não tem sido bem tratado, porque aqui mesmo se abandonou um pouco a situação do português no estrangeiro.
- Bem. Agora só queria que dissesse ...
E Salazar não chegou a dizer mais nada porque, naquele momento, ruídos e vozes, como se pessoas estivessem a discutir, chegaram até nós. Calámo-nos.
As vozes continuaram a ouvir-se, mais altas. E uma criada veio a correr a dizer-me que a senhora pedia para sair imediatamente porque o fotógrafo tinha sido interceptado. Tirei a "cassete" do gravador, peguei no meu casaco, beijei Salazar e disse-lhe: obrigada ... Se puder, volto ...
Ele acenou com a cabeça, silencioso, e eu segui a criada por um corredor muita assustada. Andámos imenso, descemos escadas interiores e cheguei a uma portinha lateral. Saí.
No dia seguinte fui informada que era melhor deixar o hotel onde me hospedava, em Lisboa, pois a PIDE tinha descoberto que eu era jornalista e queria divulgar notícias e coisas sobre Salazar. O fotógrafo que nos tirou as fotos fora apanhado e estava preso. A máquina tinha desaparecido e eu resolvi fazer o mesmo, por uns tempos ... Voltei para Braga, para casa de meu pai, até tudo se acalmar. Depois, tentei em vão que esta entrevista fosse publicada, mas tanto aqui como no Brasil, altos poderes se levantaram sempre, para impedir. Só depois de Salazar ter morrido é que estas últimas palavras foram lidas (...)."
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