Comem bacalhau, festejam o Natal e torcem por Cristiano Ronaldo. Neste 10 de Junho o PONTO FINAL foi conhecer aqueles que constituem a maioria da comunidade no território – portugueses com sangue chinês.
Ariana e Manuel já perderam a conta às vezes que tiveram de responder à pergunta, repetida quando se apresentam: “Fala português?”. É que apesar de o seu nome denotar o contrário, Ariana Lopes Monteiro e Manuel Jacinto dos Reis têm o passaporte e o bilhete de identidade mas nunca visitaram Portugal e não falam a língua. Uma contradição visível sempre que têm de responder à pergunta. E que incomoda pelo menos Ariana.
“Quando me perguntam se falo português e digo que não, é embaraçoso”, ri a recém-licenciada de 24 anos. “Por isso há dois ou três anos senti que devia voltar a aprender. Para mim isso tem que ver com a minha identidade”, explica, em inglês, sobre a língua materna do avô.
Deixar de falar português dentro de casa foi uma questão prática – a mãe, chinesa, achou ser mais útil que a filha falasse a língua do dia-a-dia.
“Quando ela era pequena a minha mulher disse-me: ‘Nós vivemos em Macau e ele devia estudar chinês’”, justifica o pai, Albano, que deixou de falar português em casa num momento que também coincidiu com a transferência de soberania em 1999.
“Hoje é uma grande diferença. Antes falava no serviço, mas quando houve o regresso à China tudo mudou bastante”, recorda Albano, reformado, em português.
Na prática isso significa que aprender a língua passou a ser um esforço.
“Não ouvimos a língua no dia-a-dia, na rua, e para a recuperarmos temos de fazer algum sacrifício para ter algo que antes era feito facilmente”, diz Miguel de Senna Fernandes, um dos organizadores dos colóquios da identidade macaense.
O também advogado dá um exemplo muito próximo de si: o da casa de um amigo de infância onde sempre se falou português – Miguel com os pais do amigo e destes com os filhos – mas em que tudo mudou quando o amigo de Senna Fernandes constituiu família casando-se com uma chinesa. “Os filhos não estudam português e por isso ele fala com eles em chinês e mesmo os avós tiveram de o fazer. É uma revolução total”, conta.
Por vezes, essa decisão é lamentada pelos filhos.
“Hoje pergunto ao meu pai porque não me ensinou português. Quando era pequeno não gostava de aprender por causa da gramática, mas agora penso que o deveria ter feito”, lamenta Manuel Reis.
Henrique Silva, filho de macaense, é da mesma opinião – é que, apesar de perceber a língua, tem dificuldades a ler e a falar.
“Quando era pequeno achava que não era tão importante aprender, mas agora digo que sou português e como não falo tão bem sinto-me envergonhado”, diz. No entanto, apesar disso, Henrique mantém hábitos portugueses – sobretudo à mesa. Aliás, como todos os entrevistados pelo PONTO FINAL. Albano Monteiro cozinha arroz de marisco e de pato, Manuel lembra o bacalhau que come em casa e Henrique confessa que às vezes se baralha.
“O meu pai [que é macaense] cozinha pratos portugueses e macaenses e por isso às vezes fico confundido entre eles”, confessa depois de tentar enumerar os petiscos comuns na cozinha da família.
Português ou macaense?
Já se para alguns – mais novos – Portugal é mais distante, no caso da geração de Albano, 52 anos, a resposta é rápida. Diz-se português e, sem surpresa, atira logo quando se fala de futebol: “A família toda é da selecção”.
A filha confirma a ligação ao país.
“Não me identifico com a China nem com os chineses. Tenho mais orgulho em ser portuguesa. Na minha opinião, Macau estava melhor sob a Administração portuguesa, apesar de agora estar mais seguro”, diz Ariana, que reconhece, no entanto, que não acompanha a actualidade portuguesa.
“Está tão longe de mim. Vivo em Macau e por isso o que acontece à minha volta é mais importante”, justifica. Já para Henrique, as notícias de Portugal vêm através do pai, que lê os jornais portugueses religiosamente.
No caso de Manuel, macaense, a relação com Portugal não é tão forte.
“Tenho passaporte, mas francamente não tenho nenhuma relação com Portugal. Nunca estive lá. Descrever-me-ia como macaense e não como português”, diz.
Na opinião de Miguel de Senna Fernandes, este afastamento será a postura da maior parte dos portugueses de Macau.
“A maioria das pessoas de nacionalidade portuguesa é de etnia chinesa. São juridicamente portuguesas, pois têm o passaporte, mas culturalmente não o são. Estão desligadas de Portugal”, defende.
O cônsul-geral de Portugal em Macau e Hong Kong percebeu isso. Assim, para chegar à maioria dos 162 mil portugueses que residem na RAEM e Hong Kong, Vítor Sereno dirigiu-se ao órgão mais lido do território.
“Fui ao jornal Ou Mun e pedi para me reunir com o director e a equipa. Fi-lo para me aproximar deles e mostrar-me à disposição e fornecer informações práticas. Esta foi uma coisa que sempre disse aqui: sinto-me responsável por 162 mil cidadãos. Para mim não há qualquer espécie de distinção”, declara o diplomata.
No entanto, apesar do afastamento, todos os inquiridos pelo PONTO FINAL assinalam com pena que a herança portuguesa se perca.
“Não tenho a certeza se a cultura vai desaparecer, mas espero que seja preservada. Espero que os meus filhos conheçam o Natal e a Páscoa, apesar de a minha noiva ser chinesa”, conta Manuel Reis. E acrescenta: “É uma pena perderem-se muitas tradições portuguesas. Se não me tivesse entrevistado não sabia que era o Dia de Portugal”.
P. S. A.
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terça-feira, 10 de junho de 2014
Notícias de Macau - Actualidade
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