sábado, 19 de maio de 2012

Canteiro de palavras ( LI ) - Saramago

in Memorial do Convento















"(...) Meu querido rei, cá recebi a sua carta e nela vi tudo quanto tinha para me dizer, o trabalho aqui não tem faltado, só paramos quando chove tanto que até os patos diriam basta, ou quando se atrasou a pedra no caminho, ou quando os tijolos saíram de má qualidade e ficamos à espera que venham outros, agora anda tudo aqui em grande confusão com a tal ideia de alargar o convento, é que o meu querido rei nem imagina o tamanho daquele monte e a soma de homens que requer, tiveram de largar a obra da igreja e do palácio, vai ser um atraso, até canteiros e carpinteiros andam a acarretar pedra, eu umas vezes com bois, outras vezes com o carro de mão, tive foi pena dos limoeiros e dos pessegueiros que foram arrancados, os amores-perfeitos foi um ar que lhes deu, não valia a pena ter semeado flores para depois as tratar com tanta crueldade, mas, enfim, como o meu querido rei diz não devemos nada a ninguém, sempre é uma satisfação, é como a minha mãe que dizia, paga a dívida bem, não olhes a quem, coitada, já morreu, e não verá o maior e mais formoso monumento sacro da história, como disse na sua carta, ainda que, para ser-lhe franco, nas histórias que conheço nunca se fala de monumentos sacros, só de mouras encantadas e tesouros escondidos, e por falar em tesouros e mouras, a Blimunda está bem, muito obrigado, já não é tão bonita como foi, mas quem dera a muitas novas estarem como ela, o João Pequeno manda perguntar quando é o casamento do infante D.José, que lhe quer mandar um presente, se calhar é por terem ambos o mesmo nome, e os trinta mil portugueses recomendam-se muito e agradecem, a saúde deles assim, assim, no outro dia houve aí uma caganeira tão geral que Mafra fedia três léguas em redor, alguma coisa que comemos e nos assentou mal, eram os gorgulhos mais que a farinha, ou as varejeiras mais que a carne, mas teve graça ver um rol de gente de rabo à vela, com a frescura que vinha do mar, muito aliviadora, e quando uns acabaram havia logo outros tantos, às vezes era tal a urgência que onde estavam ali davam de corpo, ah, é verdade, ia-me esquecendo, também nunca mais ouvi falar da máquina voadora, talvez tenha levado o padre Bartolomeu Lourenço para Espanha, quem sabe se a tem agora o rei de lá, que, segundo oiço dizer, vai ser seu compadre, acautele-se, com isto não enfado mais, lembranças à rainha, adeus, meu querido rei, adeus."

Sem comentários :

Enviar um comentário

Seguidores