by Ponto
Final |
A
actriz e agora também escritora Fernanda Torres diz que a aventura
literária é consequência do declínio do cinema e do teatro no
país. O público da FLIP recebeu-a de braços abertos.
Hélder
Beja, em Paraty
Fernanda
Torres dispensa apresentações para qualquer brasileiro e até para
muitos falantes da língua portuguesa noutros cantos do mundo.
Estrela nos palcos e atrás das câmaras, consagrada em Cannes no ano
de 1986 quando arrecadou o prémio de melhor interpretação feminina
pelo filme “Eu Sei Que Vou Te Amar”, a filha da também actriz
Fernanda Montenegro tem agora outro lugar na cena artística do país:
o lugar de autora.
“Fim”,
primeiro romance da mulher que já há muito vem escrevendo para as
revistas Piauí e Veja, trouxe-a à Festa Literária Internacional de
Paraty (FLIP) como convidada, mas é um livro que surge quase que por
acidente.
A
obra nasce de “uma encomenda de um conto sobre a velhice”. “Em
quatro dias escrevi um conto sobre esse velho que morria atropelado.
Ele tinha quatro amigos e aí eu achei que queria matar os outros da
mesma maneira. Então fui matando um por um na primeira pessoa. Nessa
altura já estava trabalhando com a [editora] Companhia das Letras e
me falaram ‘tente a terceira pessoa’. E aí vi que queria
escrever as mulheres na terceira pessoa e fui recheando o livro com
as histórias das mulheres deles. Não foi um livro pensado, não
consigo saber o destino dos meus personagens”, contou a escritora
aos muitos espectadores da FLIP.
Ao
lado do autor peruano Daniel Alarcón (“À Noite Andamos em
Círculos”) numa das mais bem sucedidas mesas da 12ª edição da
festa literária que trouxe cerca de 25 mil pessoas a Paraty,
Fernanda Torres falou sobre o caminho que a conduziu à escrita: “Uma
das coisas que me levou à literatura foi essa questão da crise que
eu sinto no teatro, que hoje está muito colado ao entretenimento
(...) ”. A artista diz ter sentido “estrangulamento no teatro, na
TV e no cinema” no que toca a poder abordar temas mais delicados.
“Está tudo muito ligado ao patrocínio, a questão da produção é
muito maior que a coisa em si. Quando você escreve você depende da
sua visão de mundo. Há uma autonomia e liberdade enormes (...).”
O
primeiro romance de Fernanda Torres recebeu elogios de autores como
João Ubaldo Ribeiro, recentemente falecido. “Fim” é um livro
“sobre pessoas que não tinham nenhuma função, nenhuma grandeza,
mas o próprio facto da existência tornava a história delas
interessantes”, resume a autora. “Parti do hedonismo carioca,
quis falar sobre o individualismo”, acrescenta.
No
pedestal do romance
“Fim”,
romance “estranhamente masculino” como a própria escritora o
define – Jô Soares disse tratar-se de “um livro com testículos”
–, representou para Fernanda Torres o real bilhete de entrada na
cena literária brasileira. “É curioso que a gente está na FLIP
do Millôr [Fernandes, autor homenageado desta edição] e a charge
[cartoon] está para a pintura assim como a crónica ou a dramaturgia
estão para a literatura. Então, tenho um sentimento de que [com
este romance] entrei para um lugar nobre, que me olham como se
estivesse num lugar mais nobre do que na desgraça de onde eu vim”,
atirou a convidada a uma plateia que se desfazia em gargalhadas.
“Há
três dias eu estava fazendo um streaptease na boate La Conga [para a
sitcom ‘Tapas & Beijos’]. Eu já vendi caipirinha em pó. O
actor é um ser que não vale nada. Mas um escritor vale muito. Então
eu espero não conspurcar a literatura”, ironizou Fernanda Torres.
O
ofício da escrita, que leva a sério, fica normalmente reservado
para as últimas horas do dia, passado entre câmaras. “Eu gravo o
dia inteiro na televisão, chego à noite, ponho os filhos para
dormir e aí escrevo geralmente das dez à meia-noite”, descreveu a
artista. Hoje, assume, não conseguiria passar sem escrever. “Ou
estou escrevendo uma crónica, ou um roteiro [guião]... Hoje não
conseguiria [não escrever], é como se não tivesse um pedaço de
mim. É uma doença, uma forma de expressão que você não consegue
se livrar. Escrever para mim virou isso.”
Nem
os conselhos de João Ubaldo Ribeiro, amigo da família, a demoveram.
Quando Fernanda Torres pensou em publicar um primeiro romance, o
consagrado autor brasileiro disse-lhe: “Não faça isso, o mundo
literário é muito violento”. Agora, a autora analisa a frase e
conclui: “Ele tinha absoluta razão”.
O
humorista e multidisciplinar Millôr Fernandes, homenageado desta
FLIP de 2014, mereceu as últimas palavras da autora. “O Millôr é
um livre pensador, é o cara mais livre pensador que já vi. É um
tradutor extraordinário, que fazia com que você compreendesse
Shakespeare”, disse sobre o homem que considera “o amigo mais
inteligente” que a família teve.
“O
Millôr não existe. A gente perdeu ele, o Ubaldo e o [Ariano]
Suassuna. Acho que a gente está perdendo a geração humanista. São
homens que não têm nenhum sentimento de inferioridade por
escreverem em português e serem daqui. Agradeço muito aos meus pais
por ter conhecido o Millôr. Ele e o Ubaldo são os homens mais
livres, sagazes e extraordinários que já conheci.”
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