sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Agruras de autor

Miguel Torga in A Criação do Mundo

(aqui, alguns centímetros de texto para a juventude, eventualmente, menos informada e com excesso de mensagens de telemóvel ...)

"(...) E começaram, então, as correrias para a tipografia, com o inevitável e pernicioso abandono do consultório, seguidas do habitual frenesim de emendas que desafiava a paciência evangélica do Pedro, chefe das oficinas.

Já escarmentado, incluía prudentemente nos orçamentos uma margem de tolerância que cobrisse os meus exageros. Mas, neste capítulo, não havia cálculos possíveis. E, às tantas, encontrávamos-nos ambos a jogar às escondidas. Eu a esgueirar-me por entre as estantes de material e a entregar as provas directamente ao Neves, o único compositor que conseguia decifrar a gatafunhada que as desfigurava, e ele, do seu posto, a perceber a manobra e a fazer-se desentendido.

(...) - Que tal a galinha esgadanhou muita desta vez? - perguntava quando, pela mansa, vinha surpreender-me em flagrante delito de atropelo às leis da hierarquia.

- Nem por isso ... e exibia a página mais limpa que tinha à mão.

Relanceava o granel com ar compenetrado e, a seguir, pousava maliciosamente os olhos no grosso da solfa sonegada.

- Ande lá ... - e continuava a ronda de inspecção.

Até que a coisa passava as marcas e se via obrigado a pôr termo ao desatino.

- Tenha paciência, mas agora acabou-se. Não pode mexer em mais uma vírgula.

Corrigia ainda, às vezes, já com a impressão a correr, mandava levantar a composição e modificava parágrafos inteiros.

- Vai encarecer muito o trabalho, veja lá! Tenho de lhe debitar o tempo que a máquina estiver parada ... Mas se entende que fica melhor ...

Velho anarquista, talvez revivesse nas minhas insatisfações e rebeldias os seus tempos de rapaz, que evocava como que distraidamente de vez em quando, numa discreta alusão a movimentos revolucionários a que sem dúvida não fora alheio. Só essa profunda razão podia explicar a indulgência com que me aturava e até o risco que corria como empregado, comprometendo a casa, que pouco lucrava comigo de mais a mais, ao publicar, sem objecções de qualquer natureza, quantas heterodoxias eu achava por bem dar à estampa. Chegava junto dele de original na mão, e nem pestanejava:

- Temos coisa nova?
- Mais uma ...
Pegava no lápis.
- Formato o mesmo, claro. Papel?
- Do baratinho ...
- Quantas páginas?
- À volta de duzentas.
- Tiragem?
- Veja lá ... A edição é para ficar no armazém, como as outras...
- Aí trezentos exemplares? Menos também não vale a pena ...
- Está bem.
Por descargo de consciência, confessava-lhe meia verdade:
- Isto é um bocado bravo ...
- Calculo ... - e passava adiante.
Mas, como o arroxo da censura apertava de dia para dia, e o livro de agora era realmente duro, preveni-o sem rodeios:
- Este é mesmo a doer ...
- Ah, sim? Que lhe havemos de fazer! Tem pressa?
- Já se sabe ...
- Começa-se amanhã.
Enquanto durou a composição e a impressão não tocou mais no assunto. Apenas quando me entregou o primeiro exemplar brochado, desabafou, quase numa confidência:
- Somos capazes de ter sarilho com este menino ...
- Leu?
- Li.
- E acha que ...? Talvez não ...
Puxou uma fumaça, debroçou-se sobre a papelada, e murmurou, como que alheado:
- Oxalá."

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