quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Homenagem a livros herdados

Um dia levantou-se, foi ao espelho e, não tendo gostado do que acabara de ver, voltou a deitar-se rodeado de livros que teria mesmo gostado de ler. E assim ficou, pasmado a ver lombadas e, supremo atrevimento, a, de vez em quando, abrir um ou outro, beberricar o que, à cabeceira, parecia éter, e galopar, sem marcas para a posteridade, o que, num breve relance sem história, o sensibilizara no meio daquele salsifré gramatical. E fazia isto todas as manhãs, quando pressentia barulhos exteriores que indiciavam novo dia. Até que, até que, aqui há uns tempos, deixou de acordar de manhã a qualquer hora, por muito que o despertador, por certo avariado, dissesse que eram horas de ler e beberricar ... Ficou-se. Levaram-no. E eram dele alguns dos livros que guardo para, enquanto posso, e abstémio, sublinhar, reanimar, prestar homenagem ao primo que tinha livros por ler - porque o comoviam para além do razoável ...

Houve, apesar de tudo, apesar de tudo, uma certa razão no que fez. Em cada livro, de facto, difícil é um sorriso, uma carícia. Livros, em regra, são gritos, gritos comprados para ouvir gritar, reclamar, denunciar, amar com tragédia, que é para ser, diz-se, mais amor ... Romeu e Julieta, sim, claro, mas sem drama não. De algum modo, por isso, o meu primo, que é dele que falo, teve comportamentos coerentes: fazia por não ler para evitar encontros com a fantasia das palavras, com a mentira da escrita - e beberricava, beberricava até ao atordoamennto total que o acabou por levar.

Dos livros que deixou semi-abertos, alguns (poucos) são agora meus - porque ainda gosto da máscara que tenho, é verdade!, pela força que dá, mais do que escrever - escrever aqui (ou numa qualquer parede quando para "falar" isso não possa deixar de ser). Afinal, sempre há quem nos leia. Quanto mais não seja, por caridade.

E "assim sou passado de dia em dia confiado pelo dia que parte ao dia que chega."

4 comentários :

  1. Boa tarde primo Marcial,hoje fui ao teu blog...e algo me comoveu bastante...pois tu a falares no meu irmãozinho...(infelizmente foi muito cedo)e precisamente no dia em que ele faz 4 anos que faleceu...Há coisas que a própria explicação não tem explicação...coincidências?
    Ou não é mesmo de pensar ou de arrepiar..o meu pensamento estava mesmo nesse dia da triste noticia...quando tu acabas de lhe escrever um texto em sua memória... Apesar de me comover ainda mais no dia de hoje pois pelas lembranças que tenho dele ...boas e más...(sem comentários) te agradeço por acaso até por ele um dia que é inesquecível pela tristeza do seu desaparecimento,beijinhos e mais uma vez obrigada.
    Ana (prima)

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    1. Nem sei o que escrever. Verdade, verdade é que, IGNORANDO DATAS, me lembrei dele e ... e escrevi. Talvez porque a memória forte que dele tenho seja aquela espécie de "pedido de socorro" num "célebre" almoço.E depois o perceber que havia na sua cabeça, não sei que mais, mas uma cultura talvez acima da média. Mas quem sou eu?... Apenas um homem feliz pela feliz coincidência de hoje.Às vezes acontece-me ...

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  2. Sim gostei que fizesse alusão ao Fernando a um homem bom, resingão, sisudo e beberricão que por fim o levou prematuramente. Foi ele quem escolheu ser levado e não posso dizer mais.
    Se os livros eram o seu retrato e com eles convivia, também se pode dizer que era alegre o q.b.p. para nos fazer rir.
    Agradecemos a homenagem, pois vinda de si primo com a sabedoria literária que tem, enche-nos de orgulho por ainda se lembrar dele e de todas as asneiras que o arrastavam para o fim.

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  3. Caro Vasco, está tudo dito. Há coisas que não têm explicação: dos 365 dias do ano, ter "escolhido" o de hoje, não para prestar homenagem, mas para recordar ... Não sei que escrever mais ... EMOCIONANTE.

    Um abraço.

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